As delirantes narrativas de César Aira
Após pequenas férias, o colunista reencontra, neste início de ano, a obra daquele que é considerado o maior prosador argentino vivo
atualizado
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César Aira completa 70 anos em fevereiro. Desde 1981, ele lança com regularidade pequenas prosas, algo entre a novela e o romance. São mais de 100 livros, com uma média de 100 páginas cada. E continuamos contando, ano após ano. Aira é um artista de histórias infindáveis.
A quantidade levou Ricardo Strafacce a organizar um catálogo, publicado na Argentina no ano passado. O coordenador dividiu a obra por gêneros (Romances, Relatos, Diários, Teatro e Ensaios) e selecionou trechos. Nenhuma palavra crítica. Para ficar no lugar-comum, o texto cabe em si.
Entretanto, a continuidade performática da publicação ininterrupta tira as narrativas da conformidade. Vale passear pela letra A das estantes das livrarias de Buenos Aires para ter uma ideia da reprodução em escala. Os livros não estarão entre os destaques em exposição. E isso é sintomático.
A obra de César Aira escorrega, faz-se um pouco sorrateira, de difícil definição. Basta ter em mente as cinco histórias ficcionais publicadas no Brasil: As Noites de Flores, Um Acontecimento na Vida do Pintor-Viajante, Como me Tornei Freira, Os Fantasmas, e A Trombeta de Vime. Nenhuma unidade temática, pouca sinopse.
Em prólogo da reedição do primeiro livro de Aira, Sandra Contreras diz que o método e o procedimento (palavra importante) põem para funcionar uma “pulsão de sobrevivência”. A literatura está na vida de quem dela gosta, e isso bastaria. Daí o leitor não encontrar qualquer tipo de grande especulação teórica no texto airano.
Sem torções reflexivas ou invenções à moda de Jorge Luis Borges, por exemplo, Aira trouxe e traz uma novidade estética de leveza para a literatura argentina. O que não significa ser tranquilo lê-lo. O último volume publicado em espanhol (até quando?) – Prins – exemplifica ao entrar pelo terreno da acessibilidade ao texto literário.
Um popular escritor de romances góticos decide se aposentar. Está cansado, amargurado. Mas não é fácil livrar-se do metiê da vida inteira. “A simples ideia de que entenderam algo diferente do que eu teria querido dizer me produz calafrios.” A frase direta do narrador mostra de modo paradoxal a objetividade referencial que Aira procura, sem se render ao best-seller.
Estamos no campo do simulacro. E, para pensar esse processo, podemos ir à deliciosa antologia de ensaios Pequeno Manual de Procedimentos, publicada por aqui em 2007. Em um dos textos, Aira estabelece diferenças entre best-seller e literatura. Para ele, literatura é sempre experimentação, “intenção desviada”.
O best-seller seria “intenção realizada”, mera sinceridade, informação acumulada. Prins ou qualquer outra narrativa do autor não serão jamais esse ato consumado, porque fazem o “questionamento da significação” e, assim, convidam o leitor a desaprender, como um “sonho em processo”, “leituras inesgotáveis para toda a vida”.
Na edição de seu primeiro livro – Ema, la cautiva –, ele dizia na contracapa que era pobre, vivia de algumas traduções de romances góticos. Aos poucos, percebeu que havia “paixões demais, e cada uma anulava as outras como um desodorizador de ambiente”. Decidiu escrever a sua própria história gótica, “simplificada”.
Sendo assim, Prins volta ao princípio de tudo que não termina. Após decidir pela aposentadoria, o narrador encontra no ópio outra forma de encarar a realidade. É o que deveríamos fazer ao ler César Aira: deixar o delírio tomar conta. E, claro, desejar que ele não pare tão cedo a máquina de produzir cultura literária infinita.