A Uruguaia é livro para ser lido em alta voltagem
Romance do argentino Pedro Mairal é deliciosa e perigosa aventura de um dia por Montevidéu, a bordo das agruras de um escritor em crise
atualizado
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O casamento está por um fio. A grana anda curta. O melhor é receber no Uruguai o adiantamento pelo volume de crônicas e pelo romance a ser escrito. No câmbio de uma Argentina sempre em crise, o dinheiro perde valor num piscar de olhos.
O narrador-escritor do romance A Uruguaia deve atravessar o Rio da Prata, ir ao banco em Montevidéu e voltar no mesmo dia. Tem dois encontros marcados. Com um velho amigo e com a mulher que dá título ao livro do argentino Pedro Mairal.
Curta e intensa, A Uruguaia é uma ficção veloz. Para ler num só fôlego. Mistura narrativa policial, relato de viagem e história de amor. Não se pode contar muito para não dar spoiler e não antecipar o que leva o leitor adiante na trama.
É possível dizer, isso sim, que a obra está bem urdida no desespero por presente e futuro, na masculinidade diante do espelho, na possibilidade da arte em contexto latino-americano. Tudo se passa em um dia, com digressões no tempo.
A Uruguaia poderia se chamar “O Argentino”, porque é mais sobre o escritor Lucas Pereyra do que sobre Magalí Guerra Zabala, codinome Guerra, a linda moça que ele conheceu e beijou no verão passado, durante um festival literário.
Escritor e marido em crise, resta a Lucas viver uma fantasia a pleno vapor. Mas não precisava ter deixado a caixa de mensagens aberta no computador de casa… ir de uma margem a outra é realidade e metáfora: o Uruguai é bom lugar para ilusões.
“Estava apaixonado por uma mulher e apaixonado pela cidade onde ela morava. E inventei tudo, ou quase tudo. Uma cidade imaginária num país limítrofe. Foi por ela que andei, mais que pelas ruas reais.”
Trecho de A Uruguaia
Só que sim. O país de Luis Suárez, Juan Carlos Onetti, Loco Abreu e Mario Benedetti também sabe ser mau, apesar da paisagem idílica, da calmaria existencial, dos carros antigos e do telefone fixo. Pode morder quando menos se espera.
O Brasil é retratado como atmosfera para escapar, espaço sempre aberto a experiências fantásticas, mais de natureza do que de civilização. Talvez por isso nunca se concretize o plano de Lucas Pereyra de escrever um romance transcorrido aqui.
A experiência de leitura de A Uruguaia agrega conexões entre a canônica literatura argentina (leia-se Jorge Luis Borges) e traços da cultura platina contemporânea. Me fez redescobrir os vídeos delirantes de Tiranos Temblad.
De barco, de ônibus ou a pé, a narrativa caminha sem parar. Ou melhor, vai andando e refletindo sobre o que vê e o que viveu. Parece uma fórmula clássica (e é), mas Mairal não perde a mão. E oferece, de quebra, uma dose de erotismo.
A tradução de Heloisa Jahn mantém a pulsação no ritmo certo de cada momento. E a tentativa de resolução do enigma, que impulsiona o desfilar dos acontecimentos desde o início, segue adiante ao modo de uma canção de Jorge Drexler.
Poderia ser um grande clichêzão, pleonástico. Mas não é. Poderia ser elogio a uma nação. Mas não é. Poderia ser mais um livro sobre escritores que não conseguem escrever a não ser sobre eles mesmos. Mas, curiosamente, também não é.
Poderia ser um guia de turismo de fim de semana, em que a capital uruguaia reforçaria seus estereótipos humanos, arquitetônicos, urbanísticos. Ainda bem que não. A cidade está lá, mas esconde mistérios nas suas “calles com luz de patio”.
O livro, enfim, poderia ser lido, como notou um grande amigo, na chave do crepúsculo do macho, especialmente se focarmos na reta final. Do machismo à redenção, com direito a novas maneiras de constituir famílias. Talvez.
Prefiro pensá-lo como pequena reflexão sobre viver e tentar fazer arte na América do Sul, com amores e filhos cruzando nossas veredas. Sem culpar seus personagens, o também poeta Pedro Mairal prova o possível equilíbrio.