A poesia nos salva do lugar-comum da vida
Poemas de Paulo Henriques Britto reunidos no volume Nenhum Mistério abrem espaço para a palavra voltar a ter sentido em tempos obscuros
atualizado
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Há um lugar antigo e pronto para nos remover do desagradável natural das redes sociais. Há um espaço de repouso para escapar do óbvio demagogo da propaganda política. O leitor encontra essa comodidade entre os versos do carioca Paulo Henriques Britto.
Em Nenhum Mistério (Companhia das Letras, 72 páginas), o poeta, professor e tradutor propõe, uma vez mais, a estranha conquista do nada. À maneira de certo Fernando Pessoa, o que existe é um dia após o outro, tomados pelo prazer estético em formas clássicas.
É a sétima coletânea de poemas do autor. Aparece seis anos depois de Formas do Nada. Não estamos, ao contrário do que os títulos poderiam aparentar, diante do vazio. Nos limites de versos, rimas e estrofes, a vida prova sua inexistência fora da linguagem.
Particularmente na série que dá título ao novo livro, Paulo Henriques Britto toma expressões, lugares-comuns e clichês para dar-lhes uma saudável inflação poética. Como quem diz: da banalidade do cotidiano retiro forças para sobreviver no país-pátria-língua.
“Nas prateleiras, livros entulhados/ de palavras que escorrem devagar,/ formando umas poças ralas no chão.// É uma espécie de véspera. Calados,/ os cômodos esperam o raiar/ de alguma coisa como um dia. Ou não.”
Um dos maiores êxitos da obra é olhar a realidade nua e crua, por meio da “palavra-terra”, sem mistério ou metáfora, uma poesia de lirismo contido no enquadramento da métrica. O poeta faz o “elogio do raso”, em que o sentido surge em meio à despretensão.
Um dos mais importantes tradutores do país, Paulo Henriques Britto apresenta também poemas em inglês, com direito a duas “autotraduções”: português-inglês e inglês-português. O trânsito da palavra mostra morada inquieta no jogo dos significantes. A ressonância vem de Elizabeth Bishop, como apontou o próprio poeta em entrevista.
Aqui o território não é livre. Acredita-se na possível perfeição da forma. Parece um bom antídoto para enfrentar as feras que desrespeitam a gramática do pensamento, para abrir as alas da necessidade da compreensão a partir de um repertório comum e calmo.
Nenhum Mistério não é um livro feliz ou de felicidade. Está mais para a perda, a melancolia aberta pela falta de compromisso com o significado, promessa nunca cumprida, sempre em vão, sempre o tudo da ilusão. Trata-se de uma obra que capta essa cisão. Vale o poema Dos Nomes por inteiro:
Os nomes se enchem aos poucos.
Um dia eles perdem o estofo,
aos poucos, ou então de repente.
Então ficam ocos.
O mundo está sempre se enchendo
de cascos vazios desse tipo.
Inúteis. No entanto, assim mesmo
continuam sendo,
ocupando tempo e lugar,
iludindo quem os assume,
prestando falso testemunho
do que já não há.
E o mundo se presta a essa farsa.
É como se já não bastassem
as coisas e os nomes de coisas
que as coisas disfarçam.
E há quem (imagine!) ache pouco,
e abrace esses nomes sem estofo
e diga e rediga esses ocos
feito louco.
Estamos fraturados, divididos, machucados. Em praça pública, dizemos sem conferir, sem checar, sem avaliar em perspectiva. Vivemos na metafísica de cada um. Pelo que se apresenta no breve futuro, a poesia permanece como refúgio contraditório de sanidade.
Eu, se você fosse, desligaria o computador, iria para um canto tranquilo. Este livro nas mãos, o silêncio como adversário a ser reconquistado. Sairia em busca do sublime na potência da poesia. Esqueceria, em meio a tudo, a necessidade mesquinha de poder – para encontrar, quem sabe, “um real que se oferece, quase obsceno, à mão que acena, pura e obtusa”.