A leitura não avança nos romances de Celeste Ng
Com a expectativa de fruição frustrada, pergunto sobre as possibilidades dolorosas de abandonar uma obra no começo ou pela metade
atualizado
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A tentativa de ler os dois romances da norte-americana Celeste Ng (foto principal) me fazem, a princípio, voltar a uma noção que ouvi da ensaísta argentina Beatriz Sarlo: quality literature. Literatura de qualidade. Explica-se: algo muito bem escrito, mas que, afinal, não fede nem cheira. A gente lê e não sente o pulso.
No caso dos Estados Unidos, a discussão nasce na existência dos cursos de creative writing (escrita criativa) e o consequente enquadramento que estaria dando uma forma-fórmula à literatura do país. A outra opção, para o escritor de lá, viria do mundo editorial capitaneado por Nova York e sua ascendência sobre o gosto global.
Tudo O Que Nunca Contei e Pequenos Incêndios por Toda Parte (ambos pela Intrínseca) parecem conter a receita perfeita dentro dessas possibilidades. Uma autora filha de imigrantes chineses e sobrenome consonantal monossilábico (imagino), quase impronunciável. Histórias que envolvem dificuldades de interação cultural a um ponto sem retorno.
E o leitor ainda se deixa seduzir por uma capa atraente, com frases de efeito saídas de The New York Times Book Review ou Los Angeles Times. Não tem como dar errado, certo? Mais ou menos. Porque a leitura não flui, emperra, espera uma melhora, tenta a sorte, arrisca, tropeça, engata um pouco, engasga.
A dúvida paira sobre a cabeça do leitor: insistir ou desistir. Abandonar a leitura me faz uma pessoa má? A autora vem puxar o pé à noite? Avançar na leitura me torna um ser autodestrutivo? Agora que comecei, vou até o fim! Ajoelhado no confessionário da biblioteca, quem se salva, como se salvar?
É preciso justificar o investimento financeiro. Uma alternativa é abandonar o livro numa cadeira de praça de alimentação. Livro livre. Alguém há de gostar. Ou vender o volume no sebo, ainda que por valor risível, mas com o intuito de que a obra encontre finalmente seu leitor ideal.
Os dois romances de Ng foram companheiros de cotidiano durante duas semanas e me deram este texto. Na mochila, no banco do passageiro, na mesinha de cabeceira. Não encontraram, entretanto, ressonância literária aqui dentro. Acontece. Talvez não fosse o momento, talvez não seja o melhor momento para algo que não propõe certa radicalidade de linguagem. Não basta ser bom, diria Sarlo.
Os motivos da desistência estão na narrativa bem-comportada, ainda que trate de temas duros, difíceis, como o desaparecimento de uma filha ou o silêncio como modo de procedimento em relações familiares. Em trama psicológica duvidosa, penso ainda e sempre na trava colocada pela tradução. Será melhor e mais recompensador no original em inglês?
Para me sentir menos traumatizado, imagino leitores e leituras interrompidas, saltadas, cruzadas. Uma irmandade do abandono. Páginas rasgadas, rabiscadas, rasuradas. Ninguém tem a obrigação de ir até o fim. A vida não se faz de linearidades. Tento ouvir a voz da razão.
Mas não adianta. Pesadelos com o narrador, apontando o dedo acusatório: tanto esforço para quase nada? Toda uma indústria envolvida para que que você, petulante, abra mão da história sensível sobre uma jovem obrigada a contemplar as expectativas de uma mãe frustrada. Como assim?
Andei mais no livro de estreia, Tudo o que Nunca Contei, do que na segunda obra, Pequenos Incêndios por Toda Parte, lançada este ano no Brasil. A síndrome da repetição em torno de algo funcional toma conta do romance mais recente, com direito à exposição das estratégias narrativas. Não aguentei. Sucumbi cedo.
Não foi por má vontade, juro. Depois de certa idade, o leitor ganha o direito de não se dar a tarefa de concluir, fechar, arrematar. Não é fácil. Fica o gosto amargo da interrupção. Não maior do que o estado de estupefação e incredulidade desde o incêndio da noite de domingo, em conexão involuntária com o título do livro largado no início.
Uma grande labareda brasileira também pergunta sobre o sentido de continuar a leitura. E esfumaça, ao menos por agora, qualquer aventura ficcional de passado, presente e futuro.