A balada literária dos irmãos Coen
Produção dos cineastas para a Netflix renova o western com diálogos caprichados e viradas surpreendentes
atualizado
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O filme A Balada de Buster Scruggs (Netflix) se apresenta como livro. O quadro de abertura mostra o olho e a mão do leitor que vira a página, mira uma ilustração, passa ao título e ruma em direção ao texto. Daí, escapa das palavras para imagens em movimento no Velho Oeste.
A câmera dos irmãos Coen escreve seis histórias sobre o faroeste, a “fronteira americana”. É uma antologia delirante, da paródia ao paradoxo. A partir da junção entre ilustração e texto, o olho-câmera entra na literatura para oferecer deleite sem fim, sempre montado a cavalo.
Está tudo ali. Revólver, metal, saloon, carruagem, forca, jogo, bebida. O cavaleiro solitário, o roubo a banco, a mocinha e o-bandido, a selvageria indígena, a agilidade no gatilho, o duelo, a corrida do ouro, o cartaz de procura-se, o nascimento de uma nação. Identidade e, last but not least, espetáculo.
A ficção cinematográfica aposta em personagens fortíssimas, superlativas pela própria história. O homem enfrenta a natureza para encontrar a barbárie civilizadora. No western, os fracos não têm vez: na paisagem desértica, na exuberância verde, no inverno rigoroso, cada um a sua maneira.
No conto-título que abre o filme, Buster Scruggs fala diretamente ao espectador. Narra a ação enquanto ela acontece. Enche de violência (tarantina, digamos) o musical, vestido de branco como se estivesse fantasiado, ou em figurino baseado nos clichês da época. Aparentemente invencível, o narrador, contudo, sobe aos céus.
Quem, então, faz justiça na fronteira? Com que armas? Na resposta a essas perguntas, o filme apresenta seu melhor argumento: a palavra é bala, e a bala, palavra. Não à toa, a personagem de Tom Waits enfrenta o silêncio com discurso e grita a plenos pulmões após a reviravolta que encerra a história – baseada em conto de Jack London – da qual é protagonista.
É também uma pequena instrução narrativa que põe fim à vida de uma personagem feminina, sem que a história tivesse de fato chegado ao fim. Os irmãos Joel e Ethan Coen são foras da lei. Conhecem as regras da gramática da arte apenas para subvertê-las. Em nome do entretenimento, não dão ponto sem nó.
Tomam os lugares-comuns de um gênero narrativo para tirá-lo outra vez do esgotamento. Fazem isso apostando na riqueza dos diálogos e na surpresa das viradas. Incorporam ainda a ideia de série, propícia ao espectador contemporâneo. Moral e morte atravessam as histórias para dar-lhes alguma unidade.
Cinema e literatura interagem desde sempre. Trata-se de uma relação antiga. Mas o literário nos contos filmados dos irmãos Coen nos surpreende a todo instante cinematográfico. Enxergo os cavalos como condutores desse inefável. Não “dizem” nada. Sem eles, entretanto, a ação não transcorre.
E toda história começa por um “color plate” legendado, desenho orientado por uma frase. O cinema aciona o movimento e compreende a cor na imaginação, o que não é óbvio na literatura. Com as legendas, a experiência do espectador brasileiro mantém-se no campo literário por mais tempo, “sujando” a tela.
Seja como for, cidadãos do mundo literalmente reunidos numa carruagem noturna pensam o papel da música da palavra na sexta história. Antes, no conto mais triste, um ator mutilado tenta convencer as plateias, cada vez mais diminutas, de seu espetáculo palavroso, à base da poesia de Shelley. O desfecho? Imperdoavelmente doloroso.
Da canção que ecoa nas paredes eventuais do deserto à entrada final do corpo na casa da última história, este filme oferece diferentes registros entre a fantasia e o realismo, como se fosse um livro real, publicado em 1873. A morte, assim, nos espreita de longe na ressurreição possível da ficção literária hoje.
Um viva retumbante, pois, aos Coen.