A angústia dos pais diante do livro
Os traumas e as vitórias na árdua luta de transformar filhos em leitores até o ponto final e para toda a eternidade
atualizado
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Hoje peço licença à minha amiga Carolina Vicentin, também colunista deste Metrópoles, para falar um pouco sobre criação de filhos. Em conexão com livros, por suposto.
Isso porque o pai-leitor e a mãe-leitora alimentam desde sempre o desejo de que as filhas gostem de literatura e sejam leitoras, em sentido amplo. São a favor das vacinas literárias. Aplicam-lhes doses de ficção desde pequenas. Estarão imunes a perniciosas influências alheais, externas? Hão de inocular o vírus viciante da leitura?
No caminho, traumas. A leitura de Robinson Crusoé (nunca em versão reduzida, compacta, adaptada) transformou-se num estigma apenas contornado recentemente. Que diabos você tinha na cabeça para oferecer esse Daniel Defoe à beira da cama?, chegam a me perguntar. Estavam interessadas em princesas e no Rei Leão. Nada de náufragos em ilhas desertas, por favor.
Não tivemos sorte também com O pequeno príncipe, de aparente inocência absoluta. Mas o pavor contra Antoine de Saint-Exupéry, diga-se a nosso favor, começou numa montagem teatral causadora de pesadelos, muitos pesadelos. Havia uma cobra pavorosa em cena. E é claro que o romance foi rejeitado. Não estávamos criando meninas com vocação para Miss Brasil.
Uma serigrafia na parede de casa causou ojeriza profunda e perena à literatura de cordel. O desenho de J. Borges era legendado: “A chegada da prostituta ao céu”. Vai explicar o sentido daquilo tudo a uma criança pequena. E como convencer as amigas visitantes sobre a metafísica religiosa da coisa? Difícil, para dizer o mínimo. A cultura popular, por um erro de enquadramento etário, começou perdendo.
O caso mais dramático, entretanto, leva a alcunha de A árvore generosa, de Shel Silverstein. Eu, em particular, fui classificado de cruel e perverso, porque adoro fervorosamente o livro. “É a história mais triste do mundo!”, berram as meninas, em uníssono. Para tentar compensar um pouco, riem ainda hoje de Até as princesas soltam pum. Nada como gás espontâneo para compensar uma lágrima provocada.
Livros que teoricamente as aproximariam do mundo da arte são caso à parte. Sim, almejamos bastante, sem dó. Mas Life doesn’t frighten me (com tradução simultânea, digamos assim) era mesmo um exagero para os sentidos: assustou todo mundo. Os desenhos de Basquiat com textos de Maya Angelou tiveram recompensa futura, reconhecidos em exposição no CCBB e na luta por igualdade de condições raciais, tema de intensas conversas caseiras.
A dívida de reconhecimento veio também de outras formas. Elas nos encheram de prazer ao discernir na televisão a enfermeira que cuidou do pintor Matisse, cuja obra andou circulando pela prateleira biográfica do lar. Ou, em outro contexto, a identificação da célebre Guernica, por conta de Picasso e a menina do rabo de cavalo, de Laurence Anholt. Ler, olhar e conectar. Frida Kahlo, nesse caso, tornou-se fichinha, figurinha fácil.
Infantis, jovens, de arte. Clássicos e best-sellers. Comunicativos e experimentais. Ficção, biografia, história. Nesta história particular de educação, os volumes são bem-vindos objetos de paixão, feitos para cheirar, colocar debaixo do braço, dobrar, bisbilhotar, rabiscar (a lápis). Nos quartos ao lado, a luzinha de cabeceira é a última que morre e nos diz que algo está sendo maquinado na imaginação. De vez em quando, o grito de espanto ou o palavrão direcionado ao autor avisa que a protagonista acaba de morrer, de perder o amor da vida, de ser traído por quem menos se esperava.
Entre decepções e alegrias, portanto, os livros entraram na trajetória das minhas agora adolescentes, ainda que por vezes mal vistos numa primeira recepção. “Não posso contar que eu gosto tanto de ler”, lamentou uma delas um dia, já consciente de que a leitura no Brasil ainda é ato, gesto, atitude esquisita, fora do comum. Que pena, não? Que triste a falta de consideração social em torno da normalidade dos livros espalhados pela casa.
Essas curtas reminiscências terminam com o gosto bom de acolher os amigos que os livros escrevem na vida da gente. Amigos de carne e texto, com quem se compartilha a delícia e o delírio de nunca estar só. As meninas-leitoras aprenderam isto: a amizade da palavra escrita, da palavra que carrega valor tão exato quanto extraordinário. O que nos deixa mais do que felizes: descompensados.