Conheça a deliciosa e centenária arte das doceiras da Cidade de Goiás
Em tempos de avanço crescente da indústria alimentícia, mulheres mantêm o preparo no tacho com uso de ingredientes locais
atualizado
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Enviada especial à Cidade de Goiás (GO) – Seguindo os conselhos dos versos de Cora Coralina – “Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça –, doceiras da Cidade de Goiás resgatam técnicas ancestrais do preparo de guloseimas. Desde os alfenins de Dona Silvia Curado, 84 anos, até a Associação Mulheres Coralinas – criada há dois anos para atender vítimas de violência –, as cozinheiras se inspiram na poetisa e tentam manter viva parte fundamental da cultura gastronômica goiana.
A luta para manter a tradição é o motor dessas mulheres. O movimento bate de frente com a tendência de padronização alimentar, na qual os produtos industrializados dominam a mesa dos brasileiros. A briga não é fácil, pois a indústria alimentícia do Brasil está em alta. De acordo com a Confederação Nacional da Indústria (CNI), o setor prevê alta de 3% em 2018 – crescimento maior do que o Produto Interno Bruto (PIB) do país, fato não registrado desde 2011.
“Fizemos um estudo da obra de Cora. Ela foi nosso alicerce, por toda a sua história e coragem de romper com os atavismos do século passado”, reforça a presidente da associação e professora da Universidade Estadual de Goiás (UEG), Ebe Siqueira, em entrevista ao Metrópoles durante oficina na 20ª edição do Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica 2018).
Unindo a poesia à tradição, as cozinheiras dão aos doces glaceados um sabor autoral. “Elas contam a história da cidade, de Cora, e até as delas mesmas em cada produto”, reforça Ebe. Segundo a professora, o maior ganho é não deixar as técnicas morrerem. Por isso, ministram, regularmente, atividades como a oficina voltada a moradores de comunidades quilombolas.
Solidão, que nada!
Aos 60 anos, Maria Sebastiana levanta às cinco horas da manhã e vai até a Serra Dourada colher, direto no pé, os belos cajus do cerrado. O fruto é o ingrediente principal do requisitado doce de caju vendido por ela há mais de 35 anos. A receita integra o sustento familiar da goiana, casada há 43 anos com o pedreiro Orion Avelino.
Feito no fogão à lenha, como aprendeu aos 20 anos com uma senhora que morava na mesma rua, a compota de cajueiro precisa apenas de água, açúcar, muita paciência e amor para não passar do ponto. “Arranco as castanhas, uma por uma, amasso os cajus, retiro o suco, a acidez. Depois, mexo cantando, pensando na vida, em fogo brando até dar o ponto”, revela Sebastiana.
Há 15 anos, os glaceados da poetisa entraram na vida da vilaboense. Mas foi ensinando as colegas Coralinas que Sebastiana viu sua vida mudar. “Eu estava passando por uma crise de depressão. Uma tristeza profunda pela perda de minha irmã mais velha. Fazer amizades, me sentir útil para alguém, foi meu recomeço”, relembra.
Outra especialidade da cozinheira é o glaceado de abóbora. Crocante por fora e molhadinho por dentro, a delícia fica de molho em uma mistura de água e açúcar de um dia para o outro. “Assim, pega bem o gosto”, ensina. Depois vai ao fogo médio, na mesma calda, até engrossar.
Apesar de algumas releituras de pratos portugueses, a Cidade de Goiás possui suas próprias criações, como o limão glaceado recheado com doce de leite. Feito com limão-galego, colhido na chácara de amigos de Sebastiana, o doce é comido com casca e tudo. “Cozinho inteiro, do jeito que tirei do pé. Depois corto a tampinha e tiro o bagaço. A cumbuquinha tem de ficar na água com açúcar um dia para retirar a acidez”, revela. Por fim, basta rechear com doce de leite feito no tacho.
Carioca radicada na Cidade de Goiás há 15 anos, Cecília Souza Santos da Costa, 74 anos, passa – com boa vontade – os segredos da receita de Flor de Coco. “Quanto mais pessoas souberem, melhor. Não quero levar nada comigo. É uma satisfação quando alguém consegue reproduzir e vem me agradecer”, afirma a cozinheira.
Alfenins de Dona Silvia
Com 85 anos, Dona Silvia da Silva Curado é a única doceira da Cidade de Goiás que conhece os segredos do preparo do Alfenim. A cozinheira vende os bibelôs comestíveis da janela de casa, em frente à arquitetura barroca da praça do Largo do Chafariz.
Dona Sílvia é patrimônio para, pelo menos, três gerações de vilaboenses e teme que a receita do doce, aprendida com sua avó, se perca quando ela não estiver mais entre nós. “Já não ando tão bem de saúde, mas continuo fazendo com os olhos fechados. Se eu morrer, a receita vai junto comigo”, lamenta.
De origem árabe, chegado ao Brasil nas Naus portuguesas, o doce é feito com açúcar, limão, água, e amido de milho ou polvilho – para dar liga. Além de superdelicados, brancos e frágeis, a maioria reproduz imagens do Divino Espírito Santo: a pomba da paz ou o rosto de Cristo.
O primeiro passo da fabricação é a limpeza do açúcar. Os ingredientes são colocados num panelão que é levado ao fogo para formar o melado. Durante a fervura, acrescenta-se um pouco de água, facilitando a retirada das impurezas com uma escumadeira. Depois de limpo, deixa o caldo doce descansar até chegar ao ponto de bala. Em seguida, esfria na pedra arrefecida e pega o “ponto de puxa”.
Essa puxa é batida com as mãos até ficar branca, quando então vai a uma mesa e é cortada em pequenos pedaços, próprios para serem modelados com os símbolos do Divino (pomba, Nossa Senhora, coroa), flores, bichos e até arranjos de casamento. Depois de modelados, secam ao sol.
A repórter viajou a convite da Secretaria de Educação, Cultura e Esportes do estado de Goiás