Doutora, professora da UnB ressignifica o Cerrado na gastronomia
Com a proposta de democratizar frutos como pequi e baru, a ideia de Tainá Zaneti é capacitar moradores da região a usar insumos locais
atualizado
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Uma gaúcha criada em terras brasilienses e apaixonada por pequi tomou para si uma missão nada fácil: capacitar quem vive no Cerrado – em especial, o pequeno produtor local – a se alimentar com o que a terra dá. A professora Tainá Zaneti, do Centro de Excelência em Turismo da Universidade de Brasília (CET/UnB), comanda o Pitadas do Cerrado, da UnB TV, uma série de vídeos que poderia ser um programa clássico de receitas, mas tem nos frutos do Cerrado o trunfo exótico para atrair o público em busca de novos sabores.
A série, que conta com receitas inusitadas, como moqueca de cajuzinho e caipirinha de cagaita, é o resultado da construção da carreira de Tainá. “O Pitadas surgiu da necessidade de democratização da gastronomia. Por que temos que ser tão elitistas ao tratarmos de algo tão básico como a alimentação? Nunca entendi por que a área era tão fechada a um grupo seleto”, comenta a docente, que é também a primeira gastrônoma brasileira a conquistar o título de doutora.
A relação de Tainá com os insumos do Cerrado começou em 2008, quando a jovem concluía o curso de Gastronomia no Iesb e passou a participar do movimento Slow Food em Brasília. Ela, que sonhava em abrir uma pizzaria ou uma sorveteria, se desencantou do serviço de restaurantes ao se deparar com uma questão fundamental: o produtor rural geralmente não é valorizado na alta gastronomia e, embora seja a pessoa que cultiva os ingredientes, não tem condições de pagar pelo prato feito por um chef conceituado.
Na faculdade, me dei conta dessa lacuna: quem produz não sabe o que é feito com os insumos, quem cozinha não sabe de onde vem a comida, e o cliente está alienado desse processo todo. A gastronomia ainda é muito unilateral, não é uma ponte entre o campo e a mesa.
Tainá Zaneti, professora no CET/UnB
Há mais de uma década, parte do trabalho de Tainá é adaptar receitas tradicionais a insumos abundantes no Cerrado. Assim que se formou, entrou para um projeto de extensão da Universidade de Brasília (UnB) de uso não madeireiro de árvores da região. Ao descobrir que as polpas das frutas estavam sendo desperdiçadas, se prontificou a elaborar preparos simples para ensinar a quem vive e cultiva plantas na região.
“A gente fazia essas oficinas e ensinava os preparos com técnica. Existe uma diferença entre geleia e chutney, por exemplo. Ensinar como fazer e a nomenclatura correta faz parte desse processo de valorização do produtor”, defende a professora. Entre as receitas criadas na época, a que mais marcou Tainá e os participantes da oficina foi o brigadeiro de pequi, que ela ensinou anos depois no Pitadas de Cerrado.
Dessa experiência inicial, nasceram os livros Cerrado em Sabores, que Tainá assinou junto às docentes Janaína Diniz, Denise Barbosa-Silva e Yokowama Cabral; e o Gastronomia do Cerrado, de Rita Medeiros, para o qual a professora prestou consultoria como chef. A conclusão de seu mestrado na UnB também resultou em livro: Das Panelas das Nossas Avós à Alta Gastronomia, no qual busca entender os valores simbólico, moral e econômico dos insumos tradicionais na alta gastronomia. Em seguida, a gaúcha passou um período em Porto Alegre como docente e doutoranda na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Com o título de doutora em mãos, voltou para Brasília em 2017, quando se reconectou com o Cerrado. “Eu precisava voltar para os frutos. Vi que chefs da cidade estavam trabalhando com eles, mas sempre na alta gastronomia. Também notei que os meus alunos não conheciam as árvores do Cerrado, e aí criei o Pequinique: uma trilha sensorial pelas árvores da UnB”, conta a professora. Uma vez por mês, Tainá faz, pelo campus Darcy Ribeiro, um tour aberto ao público, durante o qual capacita a turma a identificar as plantas comestíveis do bioma.
Diante da colheita de cada aula, ela fez a volta completa: por que não usar os insumos do Pequinique para voltar a ensinar receitas, dessa vez na UnB TV? O Pitadas de Cerrado foi abraçado pela emissora da Universidade e se encaminha para a segunda temporada. “A ideia é levar o curso para o agricultor, democratizar a informação para a dona de casa. Programa de TV é um jeito fácil de passar informações, as pessoas se entretêm e gostam de compartilhar o que aprenderam. Isso é fazer pesquisa de forma criativa”, defende Tainá.
A segunda temporada do Pitadas de Cerrado está sendo gravada e volta em março à UnB TV. Para os novos episódios, Tainá quer explorar frutos que não apareceram ainda no programa, como araticum, buriti e babaçu, além de outros insumos do Cerrado, como café, arroz e gergelim kalunga. “A gente nunca vai avançar na gastronomia sem saber de si. É muito forte isso de construir um conceito de região, de nação, pela cozinha”, garante a professora.