Da cerveja ao café: bebidas e madeira formam combinação incrível
Das infusões e fermentações possíveis com o material, não se beneficiam apenas o vinho e a cachaça
atualizado
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A influência do barril de carvalho na fermentação dos vinhos foi descoberta de maneira quase acidental: a madeira era usada no lugar das ânforas de cerâmica para o armazenamento de líquidos e, alguns séculos mais tarde, os produtores perceberam como as propriedades do material eram determinantes para a qualidade da bebida. No Brasil, a cachaça também se beneficia das notas oferecidas por barris de diferentes madeiras nacionais. A arte de desenvolver sabores criados pelo material também se aplica a produtos menos tradicionais, como a cerveja e o café.
“Hoje em dia, você não precisaria mais de barril no tratamento das bebidas. São mais de 4 mil anos de uso. Se você pega uma bebida de alto padrão, como um vinho envelhecido em carvalho, 40% do custo de produção vem da madeira. No caso dos destilados, essa participação é ainda maior, porque fica mais tempo no barril. Como é um recipiente muito caro, o pessoal sempre encontra caminhos para poder gerar um produto com certo amadeirado, mas sem o armazenamento”, comenta o empresário Eduardo Martins, dono da tanoaria Dornas Havana.
Cerveja e madeira
Este é o caso da cerveja Tanoa, desenvolvida por Eduardo Neves com a consultoria de seu xará especialista em barris. A criação veio depois que o cervejeiro fez um mestrado na Universidade de Brasília (UnB) sobre a combinação do fermentado com madeiras brasileiras. No estudo, ele comparou o sensorial do carvalho com quatro espécies nacionais: amburana, castanheira, jequitibá e bálsamo.
O método usado por Neves é mais veloz que o envelhecimento em barril: a cerveja recebe, no tambor de fermentação, cubos de madeira para desenvolver o sabor. Ao cabo de três meses de maturação, o pesquisador pôde traçar um gráfico de teias que demonstra os sabores desenvolvidos em cada infusão, como baunilha e café. “O Brasil tem uma biodiversidade imensa de madeiras, minha ideia foi sair um pouco do carvalho”, comenta.
A infusão em cubinhos se faz necessária graças a uma característica da cerveja: diferentemente do vinho, a bebida não admite oxidação, processo que necessariamente acontece num barril. “Com os dadinhos, eu consigo criar ambientes sem entrada de ar, mas fazendo com que a madeira contribua com os extrativos e com a doçura”, explica Martins. Outra característica desse processo é o leque de possibilidades que a bebida oferece. Diferentemente do uísque e do vinho, que geralmente exigem envelhecimento em carvalho, a cerveja permite diversas madeiras.
Tradição
Vinho se envelhece em carvalho. Salvo algumas exceções – em Portugal, a castanha portuguesa é tradicional –, o que muda é a origem da madeira, que pode vir da França, do Leste da Europa ou dos Estados Unidos. “É um material com características de porosidade que acabam por facilitar a micro-oxigenação e estabilização dos vinhos, além de ter propriedades que ajudam na transferência de taninos, aromas e sabores que agregam valor e resultam num produto melhor”, explica o sommelier do Dom Francisco, Leonildo Santana.
Cada barril, é claro, é diferente. A influência no sensorial tem como variáveis não só a procedência do carvalho, mas o tipo de barrica, a granulosidade da madeira, a tosta (aquecimento da superfície interna antes da entrada do vinho), a idade do recipiente e também o tempo que a bebida fica ali dentro. Geralmente, o vinho passa por um envelhecimento em barril que dura entre 12 e 24 meses – mas isso também depende do resultado pretendido. Vinhos produzidos com uvas destinadas à guarda longa, como Cabernet Sauvignon e Shiraz, costumam permanecer por períodos mais longos.
O tempo de barrica é relativo. Vinhos mais complexos e que visam a um tempo de guarda mais longo permanecem por mais tempo em barris. O período de dois anos não é uma norma rígida, embora bastante comum, já que a permanência em barricas é um processo bastante caro, sendo reservado para os vinhos mais complexos. Em geral, após esse período, as bebidas são engarrafadas visando continuar seus processos de amadurecimento e envelhecimento
Leonildo Santana, sommelier do Dom Francisco
A garrafa é parte essencial para o processamento do vinho: vão aí pelo menos mais 18 meses de prateleira até a chegada ao mercado. “A etapa de descanso é que proporciona o envelhecimento propriamente dito, alteram-se as colorações, os aromas e sabores se intensificam e o vinho torna-se mais redondo e macio”, explica Santana. Se é raríssimo beber vinho direto do barril, o mesmo não pode ser dito da cachaça. “Ela aguenta oxidação. Aliás, até precisa do processo, porque tem uma quantidade extraordinária de álcool e resiste à oxidação de seus constituintes”, afirma Martins.
A cachaça, como a cerveja, permite imensa variedade de combinações de madeiras. “Existe uma certa regionalidade. Em Januária, é tradicional envelhecer a cachaça em recipientes grandes, em amburana. A região de Salinas se caracteriza pelo uso do bálsamo, também em tanoas maiores. Muitos produtores modernos, jovens, têm testado barris de carvalho de segundo uso. A madeira possui essa dimensão da regionalidade e da tradição, mas também tem quem cria, que experimenta”, comenta Martins.
Café diferente
Se o vinho, a cachaça e a cerveja precisam de algum tempo para absorver o sensorial da madeira, o café exige apenas alguns minutos. A empresa curitibana WoodSkull desenvolveu um coador feito de madeira maciça: a peça, que leva o nome da marca, é feita com itaúba e desenhada com a finalidade de acomodar um filtro da Hario V60. Os sulcos no interior da peça são esculpidos de forma que a madeira passe delicadamente seu aroma à bebida. A escolha da espécie não foi por acaso: ela resulta num material resistente e de secagem rápida.
“Nós gostamos de usar cafés mais frutados nele. Se usar algum com notas de chocolate e caramelo, o aroma da madeira deixa a bebida mais fechada, mas não é uma combinação ruim. É um método que visa uma experiência diferente, não a analise da qualidade do grão”, aponta Paulo Lins, proprietário do Acervo Café. A casa é a única no Distrito Federal onde o coador pode ser encontrado.