Ato de Carol Solberg pode quebrar “muro do silêncio” no esporte brasileiro
O julgamento ocorre nesta terça-feira (6/10), às 18h, e ela será defendida pelo presidente da Ordem dos Advogados do Brasil
atualizado
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O protesto político de Carol Solberg, que gritou “Fora, Bolsonaro” em entrevista ao vivo após conquistar a medalha de bronze na primeira etapa do Circuito Brasileiro do Vôlei de Praia nesta temporada, em Saquarema (RJ), reacendeu o debate sobre as manifestações de atletas brasileiros em causas políticas e sociais. Para além das questões jurídicas, discute-se a possibilidade de o ato da jogadora servir como incentivo para mais esportistas emitirem suas opiniões, no campo de jogo ou fora dele, e a flexibilização das regras que proíbem esse tipo de conduta nos campeonatos.
— Leon (@abecaleo) September 20, 2020
Segundo artigo presente no regulamento do Circuito Brasileiro de Vôlei de Praia, “o jogador se compromete a não divulgar, através dos meios de comunicações, sua opinião pessoal ou informação que reflita críticas ou possa, direta ou indiretamente, prejudicar ou denegrir a imagem da CBV e/ou os patrocinadores e parceiros comerciais das competições”.
O próprio subprocurador do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) do vôlei que denunciou Carol Solberg com base nos artigos 191 (deixar de cumprir, ou dificultar o cumprimento de regulamento, geral ou especial, de competição) e 258 (assumir qualquer conduta contrária à disciplina ou à ética desportiva não tipificada pelas demais regras) do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) entende que a ação dela pode ser um divisor de águas no esporte.
O julgamento ocorre nesta terça-feira (6/10), às 18h, e ela será defendida pelo presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. A atleta pode ser multada entre R$ 100 e R$ 100 mil e ser vetada de competir por até seis partidas, além de suspensão de 15 a 180 dias ou advertência.
O subprocurador é alinhado à posição da atleta, se declara antifascista e, nas redes sociais, compartilha publicações contra o governo e a favor da democracia. Recentemente, postou uma foto em seu perfil no Facebook em que aparece usando uma máscara preta com os mesmos dizeres que ela bradou ao vivo: “Fora, Bolsonaro”. Mas promete pedir pena máxima para a jogadora por entender quebra de regulamento das regras da modalidade.
“Esse debate é extremamente salutar para a democracia e pode estabelecer um marco sobre manifestações de atletas em arenas de jogo. Deve servir como um precedente para os próximos casos e vai afastar totalmente qualquer dúvida sobre o assunto, o que é muito salutar para o esporte, para as competições e, principalmente, para a democracia”, aponta o subprocurador Wagner Vieira Dantas.
No Brasil, por uma série de fatores, que vão desde a questão cultural, até o medo de represálias e de sofrer punições de clubes e associações, há poucos atletas que se posicionam, especialmente nas arenas de jogo, sobre política e pautas sociais, como a defesa dos direitos humanos e o combate aos preconceitos. Carol, portanto, faz parte de uma minoria que não quer permanecer calada.
“A manifestação da Carol não é político-partidária, que não deve ser feita em campos de esporte. Foi uma manifestação que tem a ver com a defesa dos direitos humanos e da civilização. Não é propaganda de um candidato ou de um político determinado. Trata-se da defesa dos valores da Constituição, que é mais importante que qualquer regulamento de competição”, opina Renato Janine Ribeiro, cientista político e professor de Ética e Filosofia Política da USP, e ex-ministro da educação do governo Dilma Rousseff.
“O esporte sempre vai manifestar aspectos políticos, a demonstração de sua diversidade, de suas tensões e diferenças. Os atletas deveriam manifestar apoio a Carol, independentemente da defesa de seus pontos de vistas. É uma defesa à liberdade de expressão”, reforça Rodrigo Monteiro, professor de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF).
As entidades que regem o esporte brasileiro raramente apoiam manifestações de atletas, ao contrário do que ocorre em outros países. Nos Estados Unidos, por exemplo, a NBA, principal liga de basquete do mundo, ofereceu suporte à ideia dos jogadores de paralisar o campeonato em apoio aos protestos antirracistas no país. Agora, é possível que o gesto da jogadora de vôlei de praia impulsione esportistas a se expor e provoque a reformulação de regras das competições.
“Possivelmente a maior parte dos atletas não tem consciência ou eles não pensaram em protestar. É importante um atleta quebrar esse muro do silêncio. O que ela fez deveria ser feito por todos”, sugere Janine Ribeiro.
“O atleta brasileiro dificilmente se expressa e isso é muito negativo. Não que o atleta tenha a obrigação de se expressar. Isso é uma questão pessoal. Mas eles, por terem uma penetração muito grande na sociedade e serem seguidos por diversas pessoas nas redes, são formadores de opinião. Parece que alguns vivem em bolhas e até mesmo em outros mundos. Eles poderiam muito bem emitir opiniões e serem mais ativistas, como estão sendo os atletas da NBA. O que eles estão fazendo pelo racismo lá é emblemático. Falta isso aqui no Brasil”, analisa Rodrigo Falcão, psicólogo e mestre em Psicologia do Esporte.
Uma das razões de não haver uma exposição tão grande é o receio de sofrer represálias, o que também ocorre em outros países. Se a NBA hoje apoia protestos antirracistas, há ligas e entidades que vão no caminho contrário, como a Federação Internacional de Automobilismo (FIA), que está tentando proibir os protestos de Lewis Hamilton contra a discriminação racial. No GP da Toscana, na Itália, o piloto da Mercedes vestiu uma camiseta, no pódio, com os dizeres: “Prendam os policiais que mataram Breonna Taylor”. Os policiais foram atrás de um ex-namorado da jovem negra de 26 anos no Kentucky, e, mesmo ela sendo inocente, a mataram com oito disparos.
A FIA impôs novas regras com o objetivo de impedir manifestações durante a cerimônia de premiação, na qual os pilotos de F-1 não vão poder vestir outra roupa que não seja o macacão de corrida. No entanto, o hexacampeão mundial, único negro da modalidade, já avisou que não mudará sua postura em defesa dos direitos humanos e contra o racismo.
No caso de Carol, além da denúncia, a Confederação Brasileira de Vôlei (CBV) repudiou o comportamento da jogadora no mesmo dia de seu protesto e afirmou em nota que vai tomar “todas as medidas cabíveis para que fatos como esses, que denigrem (foi criticada por usar essa palavra) a imagem do esporte, não voltem mais a ser praticados”.
A entidade, porém, não condenou a conduta de Wallace e Maurício em 2018. Na época, durante a disputa do Mundial Masculino, os dois jogadores da seleção brasileira fizeram 17 ao posarem para uma foto, em alusão ao número do então candidato à presidência Jair Bolsonaro. Carol não quis se pronunciar depois da denúncia. Antes, porém, disse em entrevista ao Estadão que “esse papo de que não se deve misturar esporte e política não dá mais”.
Voltando à década de 1980, a Democracia Corintiana pode ser um espelho importante para os esportistas da atualidade, sugere Janine. “Não era um projeto partidário e introduziu a questão da democracia em um dos clubes mais populares do Brasil”, lembra o filósofo sobre o movimento liderado por Sócrates e Casagrande, entre outros, que lutou pelas Diretas Já e contra a Ditadura Militar.
Regra 50 da Carta Olímpica
Diante de uma pressão global por parte do movimento internacional de atletas, conhecido por “Global Athlete”, o Comitê Olímpico Internacional (COI) estuda o relaxamento da regra 50 da Carta Olímpica, que proíbe qualquer protesto político, religioso ou racial nos Jogos Olímpicos. Os atletas exigem que essa norma seja retirada.
O presidente do COI, Thomas Bach, chegou a dizer que puniria aqueles que protestassem em Tóquio ano que vem por causa da morte de George Floyd, homem negro asfixiado brutalmente por policiais nos Estados Unidos, e dos manifestos no esporte contra a desigualdade racial, mas depois recuou. Hoje, as manifestações são liberadas durante entrevistas nas zonas mistas e no centro de imprensa. Mas ainda não nas arenas esportivas.
Segundo a Global Athlete, a regra 50 da Carta Olímpica viola os “direitos humanos do atletas”. Em carta enviada ao COI recentemente, o movimento ressaltou que “por muito tempo os atletas tiveram que escolher entre competir em silêncio ou defender o que é certo” e defendeu que o “atleta deve ter poderes para usar suas plataformas, gestos e vozes”. Segundo a entidade, O silêncio da voz do atleta levou à opressão, ao abuso e à discriminação no esporte”.
Ligas autônomas
Um dos primeiros a se manifestar recentemente nos esportes dos EUA foi Colin Kaepernick, jogador da NFL, a principal liga de futebol americano do país. Na temporada de 2016, ele se ajoelhou durante o hino nacional em protesto contra o racismo. E se recusou a cantá-lo. A partir do gesto, sua carreira naufragou. Seu contrato foi rompido com o 49ers e as portas da liga se fechou para ele, até o mundo “mudar” nessas novas manifestações e ele ter novamente os holofotes para si.