Reconciliação com Kobe Bryant: o homem, o pai, a lenda
Apesar do legado vitorioso e impecável dentro das quadras, Kobe deixou um histórico problemático fora do esporte
Samir Mello
atualizado
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Nos últimos tempos, muito do legado de Kobe Bryant estava passando por uma espécie de revisionismo. Desde o seu estilo em quadra até a forma como se portava fora dela.
Kobe começou sua carreira na NBA em 1996, uma época em que Michael Jordan, o símbolo do macho alfa, o herói que botava a bola debaixo do braço e salvava o dia, reinava na liga. O camisa 23 do Chicago Bulls era o modelo que todo jovem e talentoso jogador de basquete aspirava ser.
E assim, o adolescente de 18 anos tratou de emular os passos do ídolo quase à perfeição. Quase. Aos trancos e barrancos, o jovem chegou a Los Angeles querendo impor a narrativa que criou para si mesmo antes de ter estatura para tal coisa, alienando técnicos e companheiros mais vitoriosos e experientes no processo.
Apesar dos complicados relacionamentos pessoais, os resultados em quadra vieram. Kobe foi campeão. Uma, duas, três vezes. O talento individual era grande demais para ser contido. No entanto, à medida que o mito em quadra ganhava força, a vida fora dela era preenchida com contornos trágicos.
Para lidar com a repercussão negativa de uma acusação de estupro (ocorrida em 2003, que terminou com um acordo fora dos tribunais e uma semiconfissão de culpa) e tentar se afastar do episódio, Kobe criou para si o alter ego do Mamba Negra, uma versão anabolizada do jogador implacável, obstinado, que trabalha duro e não tem tempo para amigos ou companheiros menos talentosos.
Vieram prêmios de MVPs, jogos com pontuações impossíveis e, finalmente, mais dois títulos – dessa vez, conquistados como inegável líder e melhor jogador dos Lakers, validando a tal da Mamba Mentality. Kobe reinava sozinho no topo da montanha… Até que a NBA e o mundo ao seu redor fizeram um 180º.
Novos tempos
As estatísticas avançadas começaram a ganhar mais espaço. Eficiência se tornou a palavra do dia. Estrelas como LeBron James, Kevin Durant e Steph Curry, que sabiam dosar dominância com predisposição para envolver seus companheiros, foram adotadas como os rostos da liga.
Ao mesmo tempo que a NBA mudava, a sociedade também passava por uma revolução. Empoderamento feminino, o movimento #MeToo, discussões sobre saúde mental, as noções de masculinidade tradicional sendo desafiadas. O caubói que vivia e morria pela própria honra e a figura do lobo solitário se tornaram anacrônicas.
Com a idade avançada e as habilidades atléticas em queda, Kobe nada pôde fazer, desta vez, para impor sua própria narrativa. Aliás, mais do que o mérito de nem ter tentado, é preciso reconhecer: Bryant fez o possível para abraçar a nova realidade.
Em seus últimos anos, aqueles que faziam parte de sua convivência diária diziam que ele havia se tornado mais compreensível e afável com os companheiros, mais aberto à imprensa e o semblante fechado cedia cada vez mais espaço para um sorriso, principalmente quando estava em companhia da família, especialmente da filha Gianna Bryant.
Gigi foi uma das vítimas que teve sua vida tragicamente encerrada, aos 13 anos apenas, no acidente do último domingo (26/01/2020). Curiosa e detalhista como o pai, ela era uma promessa do basquete e, talvez, a principal responsável por fazer Kobe se reconectar com a modalidade após a aposentadoria e usar sua fama e influência para promover e ajudar o esporte feminino.
A sociedade machista que geralmente decide em favor do homem heterossexual famoso e rico pode logo se apressar para criar a narrativa de redenção do homem que errou, admitiu sua falha e voltou sua atenção ao seio familiar. Porém, algo relacionado a qualquer sentimento de perdão é uma coisa que só aquela funcionária do hotel no Colorado pode lhe garantir. Ao mesmo tempo, é também verdade que, após sua morte, Kobe recebeu diversos depoimentos de atletas profissionais e amadores agradecendo seu apoio e ensinamentos.
Isso também não significa que Kobe tinha abandonado totalmente seus meios irascíveis e se tornado um velho sábio e maduro. Recentemente, ele havia criticado em suas redes sociais o time de meninas que treinava por terem conseguido apenas o 4º lugar em um torneio e não se dedicarem 100%, motivando desconforto e críticas à Mamba Mentality.
Desconforto sempre fez parte da experiência Kobe Bryant. É fácil amar LeBron – atleta que, desde os 14 anos, nunca se envolveu em polêmica com mulheres, drogas ou brigas, que é socialmente consciente e abre escolas para crianças pobres. Mas não o Kobe.
Kobe é o atleta que fez escolhas de vida, no mínimo, questionáveis, e, durante muito tempo, foi símbolo de um basquete vencedor, se utilizando de um estilo que tem e sempre terá admiradores. Ao colocar frente a frente essas duas verdades, ele te obriga a refletir sobre suas próprias crenças e valores; te obriga a conciliar sentimentos conflitantes e discrepantes; te faz pensar sobre grandes e complicadas questões, como maturidade, machismo, masculinidade, possibilidade de redenção; te exige esforço para admirar.
É complicado.