Pesquisa usa futebol como estímulo para tratar casos de Alzheimer
Projeto é parte de parceria de um grupo do Hospital das Clínicas da USP e do Museu do Futebol, localizado no Estádio Pacaembu, em São Paulo
atualizado
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Depois de um dia normal de trabalho na distribuidora de autopeças Furacão, em março de 2014, o representante comercial Luis Gonzaga acordou assustado no meio da noite. Na saída do banheiro, ele teve um apagão. Não dizia coisa com coisa, mãos trêmulas. Hospital. Internação. Angústia. Vários exames descartaram câncer, meningite, AVC e problemas cardíacos. O diagnóstico definitivo foi Alzheimer, doença neurodegenerativa crônica e forma mais comum da demência. Seu sintoma mais frequente é a perda de memória de curto prazo.
Com medicação e apoio da família, Luis conseguiu reaprender a ler e a escrever depois de alguns meses. A fisioterapia ajudou na retomada dos movimentos, mas ele usa a cadeira de rodas, algo comum nesses casos. Depois de seis anos, o torcedor do São Paulo, de 78 anos, encontrou no futebol uma nova forma de resgatar suas memórias.
Luis é um dos pacientes da pesquisa “Revivendo Memórias”. Por meio de uma parceria entre o Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e o Museu do Futebol, médicos e pesquisadores levam um grupo pequeno de portadores de Alzheimer e outros problemas cognitivos e de memória para uma visita ao museu.
Acolhidos pelo Núcleo Educativo, os pacientes são estimulados por fotografias, áudios, imagens antigas, réplicas de troféus e vídeos que retratam o mundo do futebol, das artes e do entretenimento.
Diante das figuras, eles vão se lembrando do que viveram e interagindo com os outros pacientes. O encontro conta com a presença de familiares e cuidadores. Expressões importantes mencionadas pelos pesquisadores são qualidade de vida, estimulação cognitiva e reinserção social. Na linguagem do dia a dia, esses conceitos podem ser traduzidos por paixão, carinho, atenção, cuidado e pausa na solidão. “A ideia é usar a paixão pelo futebol, música e cinema, por exemplo, para ajudar pacientes com problemas cognitivos e de memória. A intenção é que o paciente se reconecte com o passado e reviva memórias especiais”, explicou o pesquisador Carlos Chechetti, idealizador e responsável pelo projeto. “Pacientes com Alzheimer acabam sendo isolados da sociedade. Esse projeto também é uma tentativa de reinserção social”.
O neurologista Leonel Takada explica que a intenção da pesquisa é estimular as memórias afetivas. “Existe um tipo de memória relacionado às emoções. Nós temos mais facilidade para guardar memórias com valor emocional. Esse projeto usa os interesses de cada pessoa para estimular a memória e as funções cognitivas de maneira geral”, explica o especialista do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
Ricardo Nitrini, neurologista e coordenador do mesmo grupo da USP, explica que “a dificuldade principal da doença de Alzheimer não é propriamente a memória no sentido pleno, mas sim a dificuldade de memorização. O indivíduo tem dificuldade de guardar fatos novos. Aquelas informações retidas tempos atrás estão, de certo modo, conservadas até as fases avançadas da doença”.
No último sábado, o Estado acompanhou uma visita da família do seu Luis ao Museu do Futebol, juntamente com a equipe do projeto. Na biblioteca, a funcionária pública aposentada Josi Duarte Binda, a filha mais velha, mostra algumas fotografias para o pai Marcelo Continelli, assistente de Coordenação do Núcleo Educativo do Museu do Futebol, também interage com o são-paulino. A filha pergunta se o pai curte a fotografia de Neymar. Seu Luis responde firme “não”. Gargalhadas na biblioteca. Ele curtiu a foto de Garrincha e ficou indiferente para o retrato de Sócrates.
“O processo de seleção de material focou em revistas que trouxessem muitas fotos, por isso a opção pela Manchete e O Cruzeiro. Além de fotos e reportagens, propagandas também poderiam ser usadas naquela ativação de lembranças”, explicou Ademir Takara, bibliotecário do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB).
Dona Josi afirma que os resultados da visita são positivos. Seu Luis entendeu qual seria o passeio daquele dia e fez questão de vestir uma camisa do São Paulo. “Fiquei surpresa com as lembranças que ele teve depois da primeira sessão. Acho importante essa interação. As pessoas têm medo de sair de casa, mas é importante”, disse. “A partir das motivações do futebol, ele relembrou coisas de jovem”.
Com o auxílio da neta, Marjory Duarte Binda, seu Luis percorre as salas coloridas do museu e para diante dos monitores para (re)viver o passado. Ele não se incomoda com o barulho, algo raro para os portadores da doença. O ex-vendedor ouve as explicações dos educadores diante de um painel de bolas e chuteiras e faz uma cara boa. Seu time oficial é o São Paulo, mas o Juventus é o do coração. Com a progressão da doença, as visitas às arenas, antes comuns, ficaram mais raras. “Ele gostava muito de ir ao estádio”, comentou a neta com a camisa do Moleque Travesso.
Mesmo depois de cinco meses desde a última visita ao museu, Elza Furlan, diagnosticada com Alzheimer há três anos, ainda se recorda do que viveu lá. “Minha mãe sempre gostou muito de futebol. Ela falou por uns quatro dias sobre o encontro e sempre pergunta quando vamos voltar. Eles vão criando vínculos de amizade com os outros”, disse a professora Elisa Affonso Furlan, filha da dona Elza.
Ela não participou do encontro de sábado por causa de problemas médicos. Elisa conta que a doença é formada por fases distintas, altos e baixos. “Para a minha mãe, é bom sair de casa. O shopping tem muita luz e barulho. Quando estão lá, eles se entendem. O futebol envolve todo mundo”.
Em 2019, foram realizados três sessões experimentais do projeto. A intenção era definir o tamanho dos grupos – os menores funcionam melhor. Para atender mais pacientes e oferecer maior número de sessões, o projeto busca parceiros, da iniciativa pública ou privada. A intenção é beneficiar pacientes de baixa renda, que têm pouco acesso a atividades complementares ao tratamento, e alcançar outros pontos do País. “Hoje, nós atendemos pacientes do Hospital das Clínicas. Nossa intenção é expandir, sonhando alto, para o Brasil todo”, afirmou Chechetti.