“Ladrão de ideia”, Guardiola vai do xadrez à matemática por ideais
Em entrevista, Martí Perarnau, seu biógrafo, comenta sobre o perfil do treinador mais badalado do mundo
atualizado
Compartilhar notícia
A épica vitória de 4 x 3 do Manchester City sobre o gigante Real Madrid, no primeiro jogo da semifinal do mais importante torneio europeu, a Liga dos Campeões, mostra, em síntese, o que Pep Guardiola defende dentro das quatro linhas. Mas relacionar o êxito do meio da semana passada sobre o poderoso time espanhol só ao futebol-arte seria simplificar a questão. Xadrez, basquete, vôlei e até a matemática são algumas das influências captadas por Josep Guardiola i Sala, que se autodefine um “ladrão de ideias”.
“Guardiola está sempre em busca de novidades. Ele as procurou em Garry Kasparov (enxadrista russo), mas também em especialistas de áreas não relacionadas ao futebol. Fez isso com Woody Allen (ator e diretor de cinema), com quem acabou conversando sobre basquete. Os argentinos Julio Velasco, treinador de vôlei, e ainda Adrián Paenza, o formidável matemático. O resultado disso é aplicar essas relações e diferentes conceitos no futebol de alguma forma. Uma das principais características de Pep é aprender novas ideias e descobrir coisas que possam ser úteis para o seu trabalho como treinador”, diz o seu mais respeitado biógrafo, Martí Perarnau.
Em entrevista, Martí comenta sobre o perfil do treinador mais badalado do mundo, que, a partir de seu início de carreira como técnico, consolidou seu status após os trabalhos de excelência conduzidos no Barcelona e no Bayern de Munique. Autor das obras “Pep Guardiola Confidencial” e “Pep Guardiola: A Evolução”, ambas da Editora Grande Área (no Brasil), o jornalista catalão encarou o desafio de revelar o que passa na cabeça desse homem, cujo trabalho nunca está bom se ele não atinge a perfeição.
O ponto de partida para a empreitada das publicações contou com a ajuda de um amigo em comum, Manuel Estirarte. O braço direito de Guardiola, que integra sua comissão técnica, cuidou da aproximação do técnico com o jornalista para detalhar seu trabalho e também perpetuá-lo aos amantes do futebol bem jogado. Quando o comandante decidiu trocar a Espanha pela Alemanha, o escritor acenou com a proposta, logo aceita pelo treinador.
“A princípio, Pep era reservado, mas com o passar do tempo, fomos ganhando confiança e ele começou a me explicar as suas ideias. Tentei ser discreto e passar despercebido no vestiário do Bayern e sempre mantive coisas importantes em segredo”, afirma. Martí acompanhou uma temporada inteira do treinador no comando do Bayern de Munique, logo depois que ele largou o Barcelona e passou um tempo em período sabático.
Muitas são as tentativas de decifrar o perfil de Pep à beira do campo. Embora a imagem do trabalho de Guardiola esteja diretamente ligada ao futebol-arte, a sua filosofia se baseia mesmo em dois pontos: a coragem e a bola. “Não fale com Guardiola sobre beleza no futebol, mas sim de eficiência. Ele está no futebol para ganhar. Mas ele quer vencer do seu jeito, com suas ideias, não obter as vitórias de qualquer maneira. No Bayern foi assim. Conquistou títulos, implementou conceitos, criou seu estilo. Mas é fato que também é criticado por não ter conquistado a Liga dos Campeões.”
Martí Perarnau cita até uma declaração do meia Kevin De Bruyne para exemplificar o pensamento do atual técnico do Manchester City. “Às vezes o Pep fica mais chateado por uma vitória em que o time não foi fiel às suas ideias de jogo do que por uma derrota em que a equipe jogou de forma consistente, mas perdeu por alguma circunstância esporádica”, diz.
No clube atual, o trabalho é intenso. Além de comandar, a missão também é contagiar o elenco. No vestiário do Manchester City, Guardiola conserva a alma dupla de homem emocional e racional. Na preleção, o gestual é forte e o “olho no olho” é preponderante para passar suas convicções. No documentário “All or Nothing: Manchester City”, que pode ser encontrado na plataforma Amazon Prime Video, é possível ter acesso a um pouco do modus operandi de Guardiola.
Na Inglaterra, ele conseguiu colocar o Manchester City na mesma prateleira de gigantes como Liverpool, Chelsea, Arsenal e o maior rival, o Manchester United, de Cristiano Ronaldo. O saldo do seu trabalho são taças no atacado: além de três títulos do Campeonato Inglês, com direito à campanha épica dos 100 pontos na temporada 2017/2018, a sala de troféus do clube foi recheada com as múltiplas conquistas de torneios nacionais como Copa e a Supercopa da Inglaterra, além da Copa da Liga Inglesa.
O choque de culturas futebolísticas o amadureceu. Como treinador, ele segue como resultadista romântico, mas traz consigo o perfeccionismo e o espírito de competidor voraz. Tanto nos triunfos quanto nos momentos mais tensos, sua figura simboliza um porto seguro para os atletas. “Muitas vezes eu não sei as respostas, mas ajo como se soubesse, pois isso passa confiança aos jogadores”, diz Guardiola, em trecho do documentário.
Obcecado por trabalhos de campo, o mantra “o que não se treina, se esquece” rege a comissão técnica e todo o elenco sob seu comando. Para Pep, não se trata apenas de repetir as ações, é muito mais do que isso. “O treinamento consiste em que os jogadores tomem decisões”, define. Tais métodos arrancaram elogios até do consagrado técnico César Luís Menotti, campeão do mundo com a seleção argentina em 1978. “Guardiola foi um furacão devastador, arrasou com toda a farsa e mentira, as aniquilou de tal maneira que agora até os italianos querem ter a bola e jogar”, disse em entrevista à revista El Gráfico.
As influências que moldam esse espírito inquieto têm raízes em Cruyff, seu treinador no Barcelona, mas esbarra em traços de Arrigo Sacchi, Fabio Capello e do próprio Menotti. Um brasileiro, em especial, também povoa o cérebro guardiolista: Telê Santana. Apesar de ter sido criado na escola europeia, Guardiola nunca escondeu que a sua inspiração tem formato verde-amarelo. Em várias entrevistas, coloca a seleção de 1982 como o melhor exemplo de futebol.
Discurso e prática se entrelaçam quando o destaque daquela equipe no Mundial da Espanha se declara ao técnico espanhol. Bola de prata na Copa de 82, Falcão diz se inspirar nos conceitos de Pep. “O Guardiola diz que ter sucesso não é vencer e ganhar 15, 16 títulos. O importante é o que você provoca nas pessoas. O quanto você as emociona”, afirmou o ex-volante do Internacional e da Roma, da Itália.
O inquieto Guardiola
O espanhol faz da dúvida o combustível para seguir em busca da perfeição. Mas engana-se quem pensa que essas indagações têm como pano de fundo a insegurança ou o medo do desconhecido. Os questionamentos estão focados no esgotamento de todas as escolhas em busca de uma melhor opção. Ou seja, ele tenta encontrar uma maneira de melhorar o que já está funcionando bem, como era no Barcelona, no Bayern e agora no City. A diferença para os outros é que Pep consegue.
A sede de obter mais conhecimento e evoluir como ser humano marca a sua vida também fora de campo. Além do espanhol e do catalão, ele fala inglês, francês, alemão e italiano. Uma de suas lições do livro “Confidencial” pode valer muito para o longo Campeonato Brasileiro. Diz mais ou menos assim: “torneios se ganham nas últimas oito rodadas, mas se perdem nas oito primeiras”.
Cruyff, ídolo e mentor
O link entre o maior jogador da história da Holanda e o atual comandante do Manchester City surge quando eles se encontram no Barcelona no fim da década de 1990. Atacante genial que liderou o “carrossel holandês” na Copa de 1974, o Cruyff treinador teve nas fileiras do Barcelona um jovem volante que, apesar de franzino e com pouco vigor para a função, se destacava nas antecipações e no toque de bola. Era mais inteligente que os rivais.
“Cruyff tem uma influência transcendental em Pep. Primeiro, porque, como técnico, foi quem o lançou no Barcelona. Segundo, porque transmitiu suas ideias e conceitos do jogo com tanta eficiência e paixão, que Guardiola ficou para sempre impressionado, a ponto de se tornar o principal aluno e seguidor de Johan”, define seu biógrafo.
Mas é quando passa a atuar fora do campo, com o comando à mão, que o estilo cruyffista dá ao agora ex-atleta uma identidade vencedora. “Todas essas ideias, conceitos e crenças vêm daí. Ele (Cruyff) foi uma das pessoas mais importantes na minha vida. É o motivo de eu estar aqui falando com você”, afirma o treinador.
Pep disse que não se vê fora do Manchester City, mas ainda não assinou seu contrato. Tem um Liga dos Campeões para disputar ainda e um Campeonato Inglês em andamento. Nada vai tirar sua concentração para mais duas conquistas. Sobre a seleção, sua contribuição seria um sonho para o futebol brasileiro, mas ele não se vê por essa região do planeta para trabalhar. Pelo menos não ainda, ou declaradamente.