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Jogo de gentlemen? Uma história da profissionalização do futebol

Após ser exclusivo das elites, futebol foi abraçado por pobres, descamisados, operários e trabalhadores braçais depois de muita luta

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ARQUIVO CRVG
Camisas Negras: o time do Vasco campeão carioca em 1923
1 de 1 Camisas Negras: o time do Vasco campeão carioca em 1923 - Foto: ARQUIVO CRVG

Se na semana passada, nesta coluna, falamos das pandemias que assolaram o Brasil, e foi inevitável não falar em Nelson Rodrigues, hoje, ao falar de uma incômoda semelhança entre os processos de profissionalização do futebol ocorridos por aqui e na Inglaterra, seria impossível não citar o seu irmão mais velho, Mário Filho.

Isso porque Mário Filho escreveu O Negro no Futebol Brasileiro, sucesso de público, crítica e bilheteria, que não esconde que o capítulo da história da profissionalização do futebol brasileiro se confunde com a luta contra a discriminação racial e pela inserção do negro na sociedade.

O futebol moderno vai surgir para o mundo na famosa Reunião da Football Association, ocorrida na Freemason’s Tavern em Londres em 1863. Um dos objetivos da reunião era unificar as regras dos diversos estilos de futebol jogados na Inglaterra, passo fundamental para o desenvolvimento do esporte.

Deste encontro nasceram as famosas 13 regras cuja simplicidade explica a posterior massificação do futebol. Mas não se enganem, o futebol não nasceu nos guetos londrinos. Muito pelo contrário, o futebol era um esporte praticado pelos membros da elite. Foram eles que forjaram o esporte em 1863 e que escreveram suas regras.

A exemplo da caça à raposa, o futebol era um jogo destinado à recreação e ao congraçamento aristocrático. O termo gentleman é comumente traduzido como cavalheiro, mas essa tradução não engloba todas as acepções do termo original. Gentleman é um sujeito que vem de uma família tradicional, que é civilizado, que estudou e que tem dinheiro, muito dinheiro. Novos ricos, comerciantes e industriais sem pedigree não ocupavam o posto de gentlemen.

A famosa frase atribuída ao Duque de Wellington sobre Napoleão explica um pouco: on the field of battle, his hat is worth 50,000 men. But he’s not a gentleman (No campo de Batalha, seu chapéu vale por 50 mil homens, mas ele não é um gentleman). Napoleão era o Imperador dos Franceses, o homem mais admirado e poderoso do seu tempo, mas não poderia ser um gentleman, uma vez que provinha de uma família pequeno-burguesa da Córsega.

Ou seja, os tais de gentlemen eram mesmo um grupinho muito seleto. E eles queriam o futebol só para eles. O futebol não era para ser jogado por trabalhadores braçais, comerciantes, soldados, marinheiros de baixa estirpe. A forma encontrada por eles para dizer isso, sem dizer, foi defendendo o amadorismo.

Ocorre que, em qualquer época, quando se defende o amadorismo no esporte, automaticamente se exclui todos aqueles que precisam trabalhar para ganhar a vida. Afinal, como garantir o sustento próprio e de sua família, se você precisa dedicar várias horas por semana aos treinamentos e aos jogos?

Por outro lado, muitos dos jovens membros da elite inglesa sequer trabalhavam, viviam de renda e podiam dedicar seu tempo livre à prática do futebol competitivo, pois isso certamente não teria nenhum impacto em suas vidas e a comida continuaria chegando às suas mesas.

Os primeiros clubes a se destacarem, portanto, eram formados apenas por gentlemen, como é o caso do Old Etonians, que teve bastante sucesso nos primórdios da Copa da Inglaterra – a Copa da Football Association, ou simplesmente FA Cup. O grande astro do Old Etonians foi Lord Arhur Kinnaird, filho de um poderoso banqueiro que conquistou a FA Cup seguidas vezes antes da profissionalização ser admitida no futebol inglês.

E a profissionalização chegou rápido na velha Albion. Em 1885. O Darwen FC e o Blackburn foram dois clubes que tiveram papel destacado nesse processo. O escocês Fergus Suter, considerado o primeiro jogador profissional da história, jogou pelos dois clubes do norte.

Sim, pois o fato de o futebol ser um esporte aristocrático não impediu que fosse jogado pelos operários das cidades industriais ao norte. Aos poucos, foi surgindo ali um sentimento de oposição aos clubes londrinos da elite e ao que eles representavam. Esses clubes compostos por trabalhadores recebiam apoio dos industriais que eram ricos, mas não eram gentlemen.

O Darwen FC com Fergus Suter foi o primeiro clube de operários a incomodar, chegando às quartas de final da FA Cup em 1789. Poucos anos mais tarde, em 1884, o Blackburn se tornaria o primeiro time da classe trabalhadora a ser campeão da FA Cup. Claro que a ascensão dos clubes do proletariado chamaria a atenção da elite, que tentou, com as armas que tinha, proibir de maneira definitiva que os clubes contassem com atletas profissionais.

Porém, esse gesto final desesperado não surtiu o efeito esperado, pois os clubes do norte ameaçaram prosseguir com uma liga independente e profissional só deles, o que no final das contas obrigou que a FA aceitasse o profissionalismo em 1885.

Mas o que tem tudo isso a ver com o futebol brasileiro? Alguns de vocês já devem estar se perguntando, uma vez que em 1894, quando o futebol chegou no Brasil, o esporte já era profissional há quase uma década na Inglaterra. Ora, isso é bem verdade, mas não podemos esquecer que o futebol chegou até nós por meio da nossa elite, a nossa velha aristocracia, a fina-flor daquilo que dispúnhamos e que mais se aproximava do conceito de gentlemen.

A história é bem conhecida: alguns filhos dos nossos nobres, que foram estudar na Europa, conheceram o ludopédio e regressaram com bolas, chuteiras, uniformes e o famoso livro de regras, como é o caso dos célebres Charles Miller e Oscar Cox.

Tendo chegado ao Brasil dessa maneira, foi natural que os primeiros clubes fossem organizados também pela elite, o que, no nosso caso particular, além dos pobres, descamisados, operários e trabalhadores braçais, excluía principalmente os negros e seus descendentes, mesmo os de pele mais clara, que na época era tratados por mulatos.

A exemplo do que ocorreu na Inglaterra, a nossa elite também defendia o amadorismo e, com isso, impositivamente deixava os pobres e negros à margem do esporte. Os nossos nobres também eram ricos e poderosos. E – malditos sejam – eles também queriam o futebol só para eles.

Mas uma coisa que o futebol mostrou desde o início foi que os estatutos elitistas e racistas daqueles que se achavam os detentores do jogo, não impediam as pessoas mais pobres e os negros de jogarem, muito pelo contrário. Assim, paralelamente aos campeonatos oficiais organizados pela high society, havia as ligas suburbanas e dessas ligas marginais não tardou sobressair o talento forjado nos campinhos e nas peladas, com toda a ginga e a malícia própria dos povos africanos.

O próprio Mário Filho conta que os brancos, quando jogavam contra negros, evitavam ao máximo o contato físico com eles e que os juízes em campo raramente puniam a violência contra os negros. No afã de evitar esse contato indesejável, do qual o negro não obtinha nenhuma vantagem, é que apareceu o drible, uma das características que tornam o nosso futebol único e padrão no mundo inteiro.

Muitos clubes se destacaram na abertura do futebol brasileiro para os pobres e negros, como a Ponte Preta, o Bangu (primeiro clube formado por operários no Brasil), o Internacional, dentre outros. O Vasco da Gama, porém, foi um ponto de inflexão da curva e de desequilíbrio desse sistema quando venceu o campeonato carioca de 1924 com uma equipe formada por trabalhadores, analfabetos e negros.

O Vasco praticava o chamado amadorismo marrom, pois por meio de uma rede de sócios do próprio clube, mantinha os jogadores pagando uma espécie de salário in natura e de forma indireta, o que propiciava que os atletas se dedicassem apenas aos treinamentos. Os camisas negras, portanto, eram um time com um preparo físico muito melhor do que os demais. Tanto que venceram muitos jogos de virada no segundo tempo, quando os adversários cansavam. Daí nasceu a reputação dos Vasco de ser o time da virada.

O sucesso do Vasco em 1924 reascendeu o debate acerca do profissionalismo versus amadorismo. Não é inconcebível que houvesse um tipo ou outro que defendesse que o futebol deveria permanecer amador em respeito aos próprios valores morais, mas, como já dissemos, defender o amadorismo no futebol brasileiro era, necessariamente, manter o esporte inacessível aos negros e aos pobres.

A reação da elite no carioca foi parecida com a reação na Inglaterra quando o Blackburn ganhou a FA Cup. Fluminense, Flamengo, Botafogo e outros clubes, abandonaram a Liga e fundaram a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA), deixando o Vasco de fora, a menos que concordasse em dispensar no mínimo 12 atletas negros.

Ainda demorou uma década para finalmente o esporte se tornar profissional no Brasil e acessível aos pobres, analfabetos e aos negros. Quase 50 anos depois dos ingleses, finalmente o futebol havia se tornado mais acessível e democrático. Logo, a presença do negro nos tornou a maior referência mundial no futebol. Jamais teríamos nos tornado a Pátria de Chuteiras sem o talento de Friedenreich, Fausto, a Maravilha Negra, Leônidas, Domingos da Guia, Zizinho, Didi, Pelé, Garrincha, Jairzinho, Romário, Ronaldo e Ronaldinho.

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