Dadá, Dedé, Didi, Dodô e Dudu: uma ode aos apelidos no futebol brasileiro
O futebol sempre foi terreno fértil para o florescimento da alcunha. Só recentemente o jogador brasileiro é conhecido por nome e sobrenome
atualizado
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Um dia desses, me lembrei do Bactéria. Já não me recordo do seu nome de batismo, pois o conheci lá pela quarta ou quinta série, coisa de uns bons 30 anos, e desde então não tenho notícias.
Era um garoto amarelo, sem nenhuma característica física que o distinguisse de outros tantos garotos pardos e amarelos, paramentados com a camiseta e os calções curtos da escola pública, a não ser por uma coleção de manchas brancas que lhe cobriam a face.
O Bactéria tinha o famoso “pano branco” ou pitiríase versicolor, uma infecção causada por fungo que produz as tais manchas brancas na pele. Daí esse irresistível apelido.
O sucesso do apelido não vem da originalidade ou da aplicabilidade ao caso concreto. Antes, o que faz o apelido pegar na pessoa é a cólera.
O êxito de um apelido é inversamente proporcional ao tamanho da ofensa que ele causa. Todo bom apelido surge de uma ruptura de uma expectativa pessoal, frente à visão perversa de outrem.
Por outro lado, as grandes iras são como meteoros, destinados a queimar e iluminar tudo ao redor por apenas um breve período de tempo. Aos poucos o estupor dá lugar à aceitação: a doce, plena e irresgatável aceitação da nova personalidade, indissociável do novo apelido. Em outras palavras, finalmente o sujeito aceita.
Aconteceu com o Bactéria. Aos poucos a personalidade anterior foi desaparecendo dando lugar ao seu novo ser. Não que ele tenha se acostumado rápido, mas quando ele percebeu, já era irreversível.
Se havia algo que ele pudesse ter feito para evitar, foi bem no início, quando ele deveria ter fingido não notar o apelido, dado boas risadas junto com os demais e tirado toda a graça (para os outros) do processo.
Essa foi uma lição que aprendi cedo com a minha mãe. Portanto, eu costumava me auto ridicularizar e com isso os apelidos não colavam. Porém, muitos dos apelidos que eu infligia ganharam o selo de verificação da perenidade. Lembro de tantos deles: Chicão, Tim Tones, Abacate, Padreco, Muriçoca, Parrudo, Bocão e Marmita, o Eremita.
Claro que o meu não é o único caso na história. O Ruy Casto conta em O Anjo Pornográfico: a Vida de Nelson Rodrigues, que o escritor Otto Lara Resende ficou muito irritado quando Nelson escreveu uma peça chamada Bonitinha, mas ordinária ou Otto Lara Resende. Otto reclamou que lá em Minas ninguém entenderia. Todo mudo pensaria que bonitinha, mas ordinária seria ele, Otto.
Contudo, mesmo assim, o Otto não foi se queixar ao Nelson, pois ele sabia que seria inútil e ainda correria o claro risco do Nelson encarnar ainda mais. A única coisa que ele pôde fazer, em protesto, foi não ir ao teatro assistir à peça que ficou cinco meses em cartaz no Rio de Janeiro.
É preciso ter a frieza do Otto se você quer evitar que um apelido apontado no momento e sob as circunstâncias certas te acompanhe pelo resto da vida.
Terreno fértil
O futebol, por seu turno, sempre foi um terreno fértil para o florescimento da alcunha. Só mais recentemente o jogador brasileiro é conhecido por nome e sobrenome, pois, antes da geração de Matheus Sales, Felipe Melo, Everton Ribeiro, Gabriel Jesus, Enzo Gabriel, Davi Lucca e Cleiton Xavier, havia os Pelés, Zicos, Vavás, Tostões, Cafus, Binos e Pepes. Somos tão pródigos nessa arte que basta dizer que nos gramados brasileiros já desfilaram nomes como Dadá, Dedé, Didi, Dodô e Dudu.
Vale acrescentar que nem todos os apelidos se tornam públicos. Os melhores, claro, são aqueles que nascem da irresignação. Mas os boleiros possuem uma espécie de código de conduta que muitas vezes não permite que esses apelidos consagrados interna corporis se tornem públicos.
Antes de escrever este relato, eu juro que tentei. Falei com dois grandes craques do passado, mas ambos disseram que em circunstância alguma poderiam revelar os apelidos, digamos, secretos, dos seus antigos companheiros.
Segredos
Poucos são os apelidos dessa natureza que acabam vazando, como é o caso do craque Nenê do Fluminense, que nos tempos de Santos era chamado de Filó; também do grande Juninho Paulista que supostamente era conhecido como Chuck, o Brinquedo assassino; e o pentacampeão Denílson que era conhecido como Morcego nos tempos da base no São Paulo Futebol Clube.
O fato de os jogadores não revelarem esses apelidos – que pela própria natureza devem ser tão irreprimíveis quanto chamar dizer um “e, aí, Bactéria, beleza?” – pressupõe um elevado apego à camaradagem que campeia entre os boleiros em geral.
Dito isso, volto a ressaltar a criatividade e inventividade do futebol brasileiro, que nos proporciona o prazer único de poder eleger um grupo inteiro de jogadores apenas com nomes de animais, senão vejamos: Aranha, Leão, Adriano Gabiru, Lopes Tigrão, Júnior Urso, Gatãozinho, Gatito, Ademar Pantera, Jorge Preá, Falcão, Walter Minhoca, Claúdio Pitbull, Lula, Lulinha e Mauro Ovelha.
Isso sem falar que podemos eleger um time totalmente automobilístico composto por nomes como Harlei, Deyverson e (por que não?) Honda, além – é claro – de Júnior Capacete, Beto Fuscão, Joel Santana e Júnior Brasília, Humberto Carrão, Gilberto Ferrari, Rubens Galaxe, Emerson Puma, Picasso, Paulinho MaLaren e Willians. Com um time assim, o mínimo que se poderia esperar seria vestir a camisa do Moto Club e vencer a Copa Toyota.