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Copa do mundo 2022

Caos na madrugada: um adeus à zona mista, o lugar mais curioso da Copa

Entre broncas de voluntários e noites viradas esperando os jogadores da Argentina, Zona Mista deixará saudades entre poucos colegas

atualizado

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Gonzalo Arroyo – FIFA/FIFA via Getty Images
Lionel Messi Argentina
1 de 1 Lionel Messi Argentina - Foto: Gonzalo Arroyo – FIFA/FIFA via Getty Images

Doha (Catar) – “Coisas estranhas acontecem no labirinto”, já dizia Alvo Dumbledore. O mago estava falando do local da terceira prova do torneio Tribruxo, no filme Harry Potter e o Cálice de Fogo, porém, ele poderia muito bem estar descrevendo a zona mista da Copa do Mundo do Catar.

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Hugo Lloris, capitão da França, em longa maratona de entrevistas
Bruno Guimarães encara os repórteres brasileiros na zona mista
Jogador da França atende jornalistas na zona mista
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Jornalistas tiveram de mostrar flexibilidade para conseguir o melhor posicionamento

Samir Mello/Metrópoles
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Hugo Lloris, capitão da França, em longa maratona de entrevistas

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Bruno Guimarães encara os repórteres brasileiros na zona mista

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Jogador da França atende jornalistas na zona mista

Samir Mello/Metrópoles

A zona mista é, historicamente, uma estrutura montada para que jornalistas consigam declarações fresquinhas dos atletas e treinadores logo após as partidas. No Mundial do Catar, ela esteve presente nas entranhas de cada um dos oito estádios da Copa. Sua configuração poderia variar de estádio para estádio, mas em geral, funcionou assim: uma sala ampla. Nas paredes, banners com os patrocinadores do torneio por onde os jogadores passavam, separados dos jornalistas por uma pequena barreira, à altura da cintura. Primeiro, os atletas atendiam as televisões, detentoras dos direitos de imagem, depois as rádios. Em último na cadeia alimentar, a imprensa escrita.

Nessa última seção, era onde o caos reinava. Em teoria, os assessores Fifa, vestidos em elegantes ternos azul-escuro, orientavam os quase 100 jornalistas sobre como funcionariam as entrevistas. Primeiro, os jogadores atenderiam a imprensa de seu país de origem. Depois, em alguma hierarquia, os falantes de inglês e espanhol. Por último, os remanescentes que não falavam nenhuma dessas línguas. Porém, lembre-se, isso foi só a teoria.

Não era incomum ver colegas brasileiros, portugueses e argentinos se emaranhando entre jornalistas árabes e marroquinos, com seus celulares e gravadores, para conseguir declarações dos atletas dessas seleções. Depois, pediam ajuda a voluntários tradutores e colegas para uma ideia rápida do que foi falado. Sem muito tempo a perder, afinal, o próximo atleta já estava a caminho.

Stress

Para os veteranos de zona mista, nada fora do normal. Uma confusão que, de alguma forma, funcionava, desconfortos à parte. Porém, o companheirismo e espírito de ajuda mútua às vezes deram lugar à animosidade. Como você pode imaginar, algumas zonas mistas e jogadores foram mais concorridos que outros. Uma simpática jornalista argentina, que havia estado, sorridente, em zonas de diversas seleções durante o torneio, se irritou com a presença de nós, brasileiros, disputando espaço com ela e seus conterrâneos por declarações dos jogadores que haviam acabado de confirmar presença na final após derrotar a Croácia. “No són argentinos!”, dizia, suplicante e em voz alta, para os assessores da Fifa, tentando descolar um local mais exclusivo, sem a nossa presença incômoda.

A repentina mudança de personalidade talvez seja fruto da privação de sono, da má alimentação e da rotina intensa de trabalho dos jornalistas durante a Copa. Muito provavelmente todas as alternativas anteriores. Com a maioria dos jogos sendo realizados às 22h (horário de Doha), as partidas terminavam depois da meia-noite — isso quando não havia prorrogação e pênaltis. Três jogadores eram obrigatoriamente designados a comparecer à zona mista logo após o jogo, o que foi mais ou menos cumprido. Porém, na esperança de conseguir aspas daqueles atletas mais visados que não apareceram suados e com as marcas do duelo ainda em seus uniformes, era preciso esperar todo o processo de vestiário, banho e coletiva de imprensa enquanto a madrugada avançava.

Não eram incomuns cenas de jornalistas com seus laptops e celulares, digitando freneticamente, no chão ou em qualquer lugar que fosse possível se apoiar para enviar o quanto antes as palavras ditas para suas redações. Depois de encerrado o trabalho, até o caminho ao shuttle oferecido pela Fifa ou ao metrô, muitos dos dias foram finalizados às 4h, 5h da manhã.

Jornalistas trabalham na zona mista da Copa do Mundo
Jornalistas se viraram como puderam para realizar o trabalho na Zona Mista
Organização

Da parte da Fifa e dos assessores, foram empreendidos alguns esforços para tornar tudo o mais organizado e objetivo possível, embora o horário que as seleções fossem aparecer — se fossem aparecer — tenha escapado um pouco de suas alçadas. Kylian Mbappé e a seleção da Alemanha, por exemplo, foram multadas pela entidade pelas ausências em coletivas obrigatórias.

Sobre a zona mista especificamente, sua dinâmica sofreu uma importante alteração após os primeiros dias de evento. Alguns dos veteranos se incomodaram com a presença de uma nova geração de jornalista/influencer que exagerou nos pedidos de selfies aos jogadores e demais registros. A resposta foi uma placa de “no selfie, no video, no photo”, lei reforçada pelos voluntários de forma ostensiva.

Quando algum jornalista era flagrado desafiando a nova ordem, um voluntário literalmente corria e colocava a sua mão em cima da tela do celular do rebelde, proferindo o comando: “No photo, no video” (um desses bravos trabalhadores foi carinhosamente apelidado pelos colegas de Casemiro, dado o seu ímpeto de desarmar os profissionais de suas filmagens piratas). Em caso de reincidência, um dos ternos azul-escuro era convocado, com a ameaça de perda de credenciamento.

Fifa proíbe registros pessoais com placa na zona mista da Copa do Catar
A Fifa tentou coibir os excessos dos jornalistas na zona mista
Para que fazer isso?

Gene Cherry, ex-repórter da Reuters, descreveu a zona mista como o “único zoológico em que os animais ficam fora da jaula olhando para dentro”. Em entrevista ao site The Athletic, ele explicou que, antigamente, as zonas mistas, que têm sua origem em competições de atletismo, eram uma fonte de informação mais exclusiva e talvez a única oportunidade de conseguir declarações de atletas. Com a crescente presença das televisões e popularidade das redes sociais, muito dessa exclusividade se perdeu.

“Eu já tive minha vida ameaçada, talvez de brincadeira, por um repórter, porque eu me recusei a compartilhar aspas. Conseguir a primeira palavra se tornou uma competição para aqueles que passavam seus dias na zona, e era importante os atletas reconhecerem o seu rosto”.

Com tantas mudanças no jornalismo atualmente, qual o real propósito da zona mista hoje em dia? Entre os brasileiros, lá pelas duas da madrugada, após Messi e a Argentina nos fazerem esperar pelo sexto jogo consecutivo, muitas reflexões foram feitas no campo do “Por que estamos aqui?” E mesmo que não dito em voz alta, pelas expressões de jogadores, assessores e voluntários, era possível perceber que pensamentos semelhantes passavam pelas suas cabeças.

É claro, a velocidade com que os fatos são divulgados ainda é um importante pilar do jornalismo, e estar lá para ouvir Lionel Messi confirmar que 2022 será, de fato, a sua última Copa; João Félix confessar que se sente mais à vontade em Portugal do que no Atlético de Madrid; e Neymar, abatido após a derrota contra a Croácia, questionar o seu futuro na Seleção Brasileira, declarações que estamparam as capas de Marca, Olé, New York Times, conferem um senso de compromisso profissional e dever realizado com sucesso.

Apesar das olheiras e do humor nem sempre dos melhores, a zona mista também foi um local de troca de experiências profissionais, de compartilhar o “campo de batalha” com jornalistas experientes, muitos dos quais foram essenciais para a escolha da profissão e desenvolvimento de uma geração mais jovem.

Seja em uma nova configuração ou na resistência da mesma, a instituição sobreviverá. E a zona mista da Copa do Mundo do Catar de 2022, um lugar como nenhum outro, vai deixar saudades. Mas talvez não muita.

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