As cartolas: como as mulheres dirigentes têm transformado o futebol
O espaço para líderes do sexo feminino avança a passos lentos. Porém, as mudanças protagonizadas por elas têm efeitos imediatos
atualizado
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A presença de mulheres em cargos diretivos ainda é rara nos clubes de futebol masculino do Brasil. Levantamento do Metrópoles mostra que o esporte é dominado por homens: nos 128 times das quatro divisões nacionais, apenas seis mulheres ocupam funções de presidente, vice-presidente, diretora e gerente, ou seja, trabalhos com poder de decisão. A conquista de espaço por cartolas do sexo feminino no país avança a passos lentos. Porém, as transformações protagonizadas por elas têm surtido efeitos imediatos, causado reviravoltas positivas e, assim, recolocando clubes no caminho da vitória.
“Trouxemos de volta o sentimento de família que se perdeu ao longo dos anos. Além disso, voltamos ao Estádio Serejão [em Taguatinga], para perto da nossa torcida”, elenca a vice-presidente e diretora de futebol do Brasiliense, Luiza Estevão. A dirigente representa um divisor de águas nas quase duas décadas de história do clube.
Isso porque, a partir da chegada dela ao Jacaré, em 2017, o time encerrou um hiato de três anos sem chegar à final do Campeonato Candango. Desde então, disputou as últimas três decisões, vencendo uma (2017). “Estávamos em crise e a responsabilidade caiu em cima de mim, por ser a filha que mais ama futebol”, relembra Luiza, caçula dos seis herdeiros do ex-senador da República Luiz Estevão, fundador do Jacaré.
Além disso, o Brasiliense voltou a atuar no Serejão, local que não sediou jogos do clube entre 2015 e 2018 por falta de laudos de segurança. Como resultado, o time voltou ao cenário nacional após três anos (2015-2017) fora do Brasileirão. O Jacaré estreou com vitória na Série D, no último dia 4, no Serejão, diante do Serra-ES: 1 x 0.
No dia a dia, Luiza dribla o preconceito. Não apenas por ser mulher mas também devido à pouca idade: 22 anos. “Pensam que ainda sou uma criança e que não dou conta do trabalho”, conta.
Desde os 3 anos Luiza frequenta os jogos do clube. “Eu entro no vestiário com os jogadores, converso com eles, acompanho todos os treinos”, relata.Luiza, que é vice-presidente e diretora de futebol, trabalha ao lado do presidente do time, Eduardo Ramos. Porém, todos os assuntos do clube passam pelo crivo dela, desde a confecção do material esportivo até as contratações e dispensas de jogadores.
Estou animada para fazer um time feminino, isso vai me ajudar a colocar as mulheres em postos de liderança
Luiza Estevão
A 1,6 mil quilômetros de Brasília, em Fortaleza (CE), outra mulher assume as rédeas de um clube de futebol: Maria José Vieira, 43 anos, presidente do Atlético Cearense, da quarta divisão. “Da questão financeira, eu mesma cuido. Desde todas as compras e o uniforme, que, inclusive, sou eu quem desenha, até a cebola para a comida dos atletas”, relata.
Mandachuva do clube desde 2018, a história dela como dirigente começou dois anos antes, quando fez parceria com o atacante Ari, do Spartak Moscou, da Rússia. Ele nasceu em Fortaleza e é dono de uma empresa de agenciamento e formação de atletas. O jogador fechou parceria com Maria Vieira quando ela trabalhava no Horizonte, outro time cearense, onde lidou diretamente com dificuldades enfrentadas pelos adolescentes.
Eu queria consertar a formação dos atletas. Não são apenas jogadores com talento. Esses jovens levam a vida normal, como se não tivessem compromisso com corpo, músculo, repouso. Pensei ‘se eu tivesse um clube, seria diferente’. Temos de combater a formação ruim e a presença incisiva de empresários que querem colocar os jovens nos clubes, mas deixam a formação humana em segundo plano
Maria José Vieira, presidente do Atlético-CE
A parceria com Ari rendeu frutos no ano seguinte, quando assumiram o Uniclinic – antigo nome do Atlético-CE, que disputava a primeira divisão cearense. No clube, a presidente aprimorou os cuidados com os atletas, como acompanhamento de saúde, inclusive, bucal. E mais: passaram a ministrar palestras sobre arbitragem.
“Os meninos tomavam cartões amarelos e eu dizia: ‘Vocês sabem o que significa isso para o futuro da equipe? Os detalhes burocráticos do futebol podem decidir um campeonato’. Ninguém lia regulamento a não ser um supervisor”, recorda. As aulas refletiram na disciplina do time: no campeonato estadual de 2018, o clube teve o menor número de cartões amarelos entre os 10 participantes.
A principal conquista naquele ano foi a classificação em terceiro lugar geral do Campeonato Cearense, atrás apenas dos favoritos Ceará e Fortaleza, ambos atualmente na Série A nacional. O desempenho garantiu ao Uniclinic a classificação à Série D de 2019, a qual o clube disputa com o novo nome. Assim como o Brasiliense, o Atlético-CE iniciou a campanha na quarta divisão com vitória, também por 1 x 0, diante do Central-PE.
Em outro estado do Nordeste, em Pernambuco, outra mulher prova que pode fazer a diferença em um meio dominado por homens: a administradora Luana Moreno, gerente de futebol do Sport, da Série B do Brasileiro. Por ela, passam alguns dos mais importantes assuntos de um clube. Entre eles, contratos de atletas, patrocinadores e fornecedores de material esportivo. A dirigente também responde pela logística do Sport e faz contato com federações e confederações. Tudo isso desde agosto do ano passado.
“Sempre há surpresa quando digo que trabalho no Sport. Mas tenho um reconhecimento bom, satisfatório”, afirma. Primeiramente, Luana executou uma auditoria no Sport. Em seguida, recebeu o desafio de ocupar, interinamente, a gerência de futebol do clube, antes comandada pelo Coronel Adelson Wanderley. Por mais de duas décadas, ele assumiu a função, mas adoeceu no segundo semestre do ano passado e morreu em novembro, aos 74 anos, em decorrência de um câncer.
“Espero sempre exercer um trabalho tão bom quanto ele durante tantos anos. É um desafio”, avalia. Desde a chegada de Luana ao Sport, o clube caiu para a segunda divisão nacional. Apesar disso, começou este ano levantando taça: voltou a vencer o Campeonato Pernambucano, o que não ocorria desde 2017.
Luana substituiu Adelson Wanderley. E não assumiu o cargo despreparada, pois já acumulava outras experiências em gestão no futebol. Antes de chegar ao Sport, ela foi gerente administrativa no Bahia, onde trabalhou por quatro anos. Desde então, a dirigente se capacitou e fez cursos de gestão técnica e de gestão do futebol na Confederação Brasileira de Futebol (CBF), onde conheceu outro exemplo de mulher em cargo de chefia no futebol profissional brasileiro: Sônia Maria Andrade, 56, primeira pessoa do sexo feminino a ocupar vice-presidência na história do Vasco.
Nunca houve exigência de formação em gestão esportiva no Brasil. No entanto, a CBF, entidade máxima do esporte no país, oferece cursos e workshops nessa e em outras áreas. Entre elas, análise de desempenho profissional e identificação e desenvolvimento do talento nas categorias de base, além de as licenças A, B e C, para quem deseja se tornar treinador.
Fora das quatro linhas
De acordo com a CBF, 47 mulheres já se formaram nos cursos da entidade. Uma delas é Sônia Maria Andrade, a segunda vice-presidente do Vasco. Ela atua na área social do Cruzmaltino desde o ano passado. “Tenho projeto no Rio de Janeiro chamado A Casa é Nossa, que atua na regularização fundiária em comunidades carentes. Na gestão do Roberto Dinamite, fui convidada por uma defensora pública a participar de eventos no clube e conheci a diretoria. Foi quando as portas começaram a se abrir para mim”, conta a dirigente, eleita na chapa do atual presidente, Alexandre Campello.
“Quando entrei, a convite do Campello, conheci a história social do Vasco, o primeiro time a dizer ‘não’ ao racismo, onde os torcedores construíram o próprio estádio [São Januário] para time de negros. Vi que estava na hora certa e no lugar certo. A partir disso, comecei a trabalhar e potencializar ações sociais”, relembra a dirigente, formada como registradora pública. A primeira ação de Sônia no cargo visava ao combate à pedofilia e alertava para a importância do canal de denúncia Disque 100. Em seguida, criou o movimento Vasco Delas, no qual reuniu políticos, jornalistas, advogados e assistentes sociais para discutir a violência contra a mulher.
A vice-presidente também lançou a cartilha Vasco Contra a Violação de Todos os Direitos. E mais: desenvolve a área de psicopedagogia nas categorias de base do Vasco e dá assistência a famílias necessitadas de atletas e funcionários. Assim como as outras dirigentes, Sônia supera o preconceito para executar o trabalho.
“A própria torcida tinha preconceito contra mulher. Uma das mensagens que recebemos foi perguntando de qual cozinha eu tinha saído. Pensei em duas possibilidades: ou responder e processar todos, ou não ler, desconsiderar as mensagens e me fazer respeitar pelo trabalho que desenvolveria”, relata. Hoje, mais de um ano após o início do mandato, Sônia diz que recebe o apoio dos vascaínos.
Ela acrescenta que, “apesar de o DNA do Vasco ser social”, as pessoas nunca exploraram esse viés. Porém, na atual gestão, segundo ela, a diretoria o trata como fator que agrega valor à marca do clube, trabalho repercutido em outros times.
Lugar para mulheres, sim
Edna Murad, 57, tornou-se no ano passado a primeira mulher vice-presidente da história de um dos principais clubes do Brasil, o Corinthians. Desde então, promoveu ações que tornaram o futebol menos inóspito para as mulheres e mostrou como elas são essenciais para o esporte, não apenas na parte técnica mas também na social.
Quando assumiu a função, Edna sabia os problemas que enfrentaria. Principalmente, machismo e homofobia dos torcedores. Afinal, frequenta os jogos do Timão desde a infância. E, quando chegou ao Corinthians, o clube carecia de ações de combate a essas questões, segundo ela. Em 8 de março do ano passado, no Dia Internacional da Mulher, Edna criou a campanha #RespeitaAsMina, contra o machismo no esporte, entre outros objetivos. O sucesso foi tanto que a iniciativa continua até hoje.
“Resgatamos a importância da mulher na sociedade e no futebol. Mostramos que a Arena Corinthians é um ambiente para elas, onde não enfrentarão machismo, terão banheiros limpos”, conta. A dirigente acrescenta que a conscientização encerrou, neste ano, o grito homofóbico proferidos pelos corintianos em seu estádio a cada tiro de meta cobrado pelo goleiro adversário: “Bicha”.
“Atuo na parte da responsabilidade social. Em todos os nossos jogos, há alguma ação. Levamos crianças e entidades, realizamos sonhos de pessoas que jamais teriam oportunidade de estar na arena ou em treino no CT. Fazemos campanhas de adoção e do Outubro Rosa [de conscientização sobre o câncer de mama] também”, detalha.
Edna acredita que sua chegada à vice-presidência do Corinthians vai abrir portas para o ingresso de outras mulheres nas diretorias dos clubes. Ela avalia que essa inserção ocorre a passos lentos, entre outros fatores, pela burocracia de alguns clubes, cujos estatutos exigem que os cartolas sejam sócios ou conselheiros para compor a diretoria. O processo demora alguns anos, de acordo com o estatuto de cada time.
Apesar dos entraves, Edna encoraja as mulheres que têm esse sonho. “Leva algum tempo, mas vale a pena. É importante que, além de se tornarem sócias e conselheiras, elas se preparem ao máximo, com cursos, por exemplo.”