Acusado de operar sistema de venda de ingressos na Copa, Valcke deixa a Fifa
O francês Jérôme Valcke deixou o cargo de secretário-geral da Fifa nesta quinta-feira (17/9). Ele passou a ser investigado pelo Comitê de Ética a pedido da própria federação
atualizado
Compartilhar notícia
Depois de ser acusado de ter operado um sistema de venda de ingressos para a Copa do Mundo de 2014, no Brasil, o francês Jérôme Valcke deixou o cargo de secretário-geral da Fifa nesta quinta-feira (17/9). Ele passou a ser investigado pelo Comitê de Ética a pedido da própria Fifa. Sua saída foi anunciada em comunicado oficial, com “fins imediatos”, pela entidade. “Valcke foi liberado das suas obrigações”, disse a Fifa, que não cita a palavra renúncia e insiste que o executivo passará a ser investigado.
Ele é acusado de ter fechado acordos para ficar com 50% dos lucros da venda de ingressos para a Copa do Mundo de 2014, realizada no Brasil, num esquema com ágio de mais de 200% nos valores das entradas e que teria envolvido mais de 2 milhões de euros (R$ 8,6 milhões) apenas para o bolso do dirigente.Num esquema que revela um “mercado negro” de ingressos operando dentro da própria Fifa, as acusações foram apresentadas nesta quinta por Benny Alon, empresário israelense e americano que desde 1990 trabalha com a venda de entradas para os Mundiais. Sua empresa, a JB Marketing, ainda apontou para o “desaparecimento” de 8,3 mil entradas para a competição e que teriam de ser vendidas pela empresa no torneio.
O jornal O Estado de S.Paulo foi um dos dez meios de comunicação do mundo e o único no Brasil a receber com exclusividade e-mails confidenciais de Valcke, revelando um esquema milionário para a revenda de entradas para o Mundial de 2014 e que está sendo avaliado em um possível caso no Comitê de Ética da Fifa. Valcke se declara inocente. O centro do escândalo é a empresa JB Marketing, que fechou um contrato em 2010 com a Fifa para vender pacotes de ingressos VIPs.
Influência
Pelo entendimento, 11 mil ingressos seriam entregues a eles em locais “nobres” dos estádios do Mundial no Brasil em 2014. A empresa teria o direito de escolher 12 jogos para os quais pediria ingressos para colocar no mercado, com preços acima do valor de tabela. Outros 12 jogos seriam escolhidos pela Fifa e a entidade lhes entregaria partidas sem o mesmo apelo comercial. Esse último pacote envolveria 2,4 mil ingressos.
Em dezembro de 2012, no Rio de Janeiro, Alon procurou Valcke durante a Soccerex e pediu um novo encontro para tratar do assunto. A reunião, porém, ocorreria apenas em março de 2013. O empresário viajou até Zurique e, no escritório da Fifa, explicou que gostaria de renegociar a questão dos doze jogos mais fracos e obter melhores partidas para o Mundial de 2014. Segundo ele, pelo esquema montado, sua empresa perderia US$ 300 mil (R$ 1,2 milhão aproximadamente) se o acordo fosse mantido.
“Valcke foi até seu cofre, colocou suas digitais e tirou dali nosso contrato”, contou Alon. “Valcke então me perguntou: O que tem aqui para mim?”, disse o empresário. “Eu respondi que poderíamos dividir 50% para cada um. Naquele momento, não pensava que a divisão seria com Valcke, mas com a Fifa e que a entidade ficaria com 50% do lucro que eu fizesse”.
Pelo novo acordo, os ingressos que a JB poderia vender não seriam mais as entradas para jogos “fracos”, sem muito apelo do público brasileiro, mas sim para os principais jogos do Mundial. Isso envolvia todas as partidas da seleção brasileira e a grande final no Maracanã. O acordo fechado era de que o valor do ágio na venda dos ingressos seria repartido em 50% entre a JB e Valcke.
No dia 2 de abril de 2013, Valcke confirmou o acordo por e-mail. O entendimento era ainda de que os dois iriam se ver no dia 3 de abril de 2013 em Zurique. Na ocasião, Alon traria o dinheiro em uma maleta. “Era um adiantamento”, explicou o empresário.
O parceiro comercial de Alon, Heinz Schild, conta que foi até um banco em Zurique e retirou de um cofre US$ 250 mil. A mala usada também era um agrado. Valcke, francês, tem uma Ferrari branca e a mala, portanto, tinha o desenho de uma Ferrari branca com uma bandeira da França.
Aposentadoria
Mas na manhã daquele dia, às 9h08, o cartola escreveria a partir de seu e-mail oficial, jerome.valcke@fifa.org: “Estou desembarcando às 11h30 então perto das 11h45 na Fifa”, disse. “Tenho um almoço às 12h com Jaime, seguido por encontros às 2h e depois às 3h com funcionários. Não tenho ideia de como podemos nos ver. Para os documentos, guarde-os em algum lugar e lidaremos com isso da próxima vez”.
Segundo Alon, a palavra “documentos” era usada por eles para falar de “dinheiro vivo”. “Não conheço nenhum outro documento que se usa para um fundo de pensão”.
No e-mail, Valcke ainda se mostra preocupado com um impacto disso em uma eventual campanha para ser presidente da Fifa. “Numa potencial corrida para a presidência, não posso olhar para eles (documentos) até que eu tome uma decisão sobre o futuro”, escreveu em um dos e-mails a que a reportagem teve acesso com exclusividade no Brasil.
Mas ele é claro em apontar o valor da mala. “Documento é meu fundo de pensão se eu procurar algo, se eu não estiver mais na Fifa ao final de 2014 ou meados de 2015, no máximo”, completou Valcke.
Alon revela que o dinheiro voltou aos cofres do banco. Mas continuou a atualizar Valcke sobre os lucros da negociata. No dia 23 de abril, um e-mail entre o empresário a Valcke comemorava: “Estamos nos dando melhor que a Bolsa de Nova York”.
Ingressos para os três primeiros jogos da Alemanha na Copa, com valor de face de US$ 190 estavam sendo vendidos por US$ 570, com total conhecimento da Fifa. Para os jogos das oitavas de final, ingressos de US$ 230 eram vendidos por US$ 1,3 mil. 50 dessas entradas eram para jogos em São Paulo, no Itaquerão, onde o Brasil estreou na competição contra a Croácia. “Ganhamos US$ 114 mil cada sobre a Alemanha”, escreveu Alon para Valcke.
Hoje, o empresário garante que o dirigente francês teria lucrado milhões ao final do processo. “Ele teria mais de 2 milhões de euros em lucros”, aponta o empresário.
Crime
Mas o esquema começaria a se complicar. Em dezembro de 2013, Alon foi chamado para uma reunião na Fifa alertando que o contrato teria de ser modificado. A explicação veio dois dias depois, alegando que, pela lei brasileira, uma empresa não poderia apenas vender entradas. Ela teria de vender pacotes de hospitalidade. Quem detinha os direitos nesse caso era a empresa Match. Um acordo foi então costurado para que a Fifa fosse substituída no contrato com a JB pela Match.
Em 12 de dezembro de 2013, Valcke escreveria de seu e-mail particular, jerome.valcke@gmail.com, e alertaria para o crime que estava sendo cometido e que Alon teria de aceitar a mudança. “Benny (Alon), se você perguntar para advogados, nada vai acontecer”, disse. “Você, nós, não temos opção. Caso contrário, o acordo será cancelado pela Fifa ou todos nós enfrentaremos, como pessoas, processos criminais. Isso não é uma piada. É muito sério. Portanto, evite muitos conselhos. “Apenas faça isso”, alertou.
Mas um outro obstáculo foi levantado pela Match, numa reunião também em dezembro durante o sorteio da Copa na Costa do Sauipe (BA). Desta vez, o presidente da Match, Jaime Byrom, alertou que sua empresa não teria como justificar as vendas e transferências de recursos e que, portanto, o acordo teria de ser em seu próprio nome. “Isso resolveria o caso para todos”, explicou Alon indicando que a Match e a Fifa o repassariam US$ 8,3 milhões pelo acordo, em valores que ainda serão pagos em janeiro de 2016 e janeiro de 2017.
Uma carta então foi redigida indicando que 11,3 mil ingressos seriam repassados para a JB, a partir de Jaime Byrom que, por sua vez, receberia as entradas da Fifa. Por si só, o acordo já violava as regras da Fifa, que indicavam que nenhum indivíduo poderia ter o direito de vender ingressos. Mas, ainda assim, o negócio foi mantido.
O esquema financeiro para fazer a transação ocorrer acabou gerando um problema bancário. Para conseguir os ingressos, a JB transferiu dinheiro de Zurique para Londres. Byrom, por sua vez, teria devolvido o dinheiro para Zurique para a própria Fifa. O banco que fazia a transação acabou expulsando a JB de sua lista de clientes por suspeitas de lavagem de dinheiro. “A Match estava sendo usada como um banco paralelo da Fifa”, acusou Alon.
Desaparecidos
Em 2014, a JB descobriria que eles estavam sendo enganados. Quando os ingressos começaram a ser entregues pela Match para Alon, os locais nas arquibancadas não eram o que havia sido combinado e apenas em assentos considerados como mais baratos. “A JB não recebeu nem de perto o que havia sido combinado”, acusou Alon. No dia 16 de abril de 2014, um e-mail foi enviado por Valcke para Benny Alon, garantindo que os ingressos seriam entregues nos “locais combinados” e que isso havia sido discutido com Thierry Weil, diretor de Marketing da Fifa.
Mas, quando a Copa começou, a JB teve de conviver com os ingressos fornecidos. “A questão que fica é o destino que foi dado às 8 mil entradas nos locais nobres dos estádios da Copa. O que ocorreram com eles? Ninguém até hoje conseguiu nos dizer para onde foram essas entradas”, acusou o empresário.
Em julho de 2014, depois de o Mundial acabar, Alon foi uma vez mais para a sede da Fifa. “Eu queria saber o que tinha ocorrido. Mas a Fifa me disse naquele momento que meu problema era com a Match, e não com ela”, disse o dirigente. A entidade e a empresa estavam com um problema maior: Ray Whelan, diretor da Match, estava preso no Rio de Janeiro, suspeito de fornecer ingressos ao mercado negro.
Segundo Heinz Schild, Valcke entraria na sala momentos depois de o encontro começar em Zurique. “Ele estava nervoso e apenas disse que estavam mais preocupados com a situação de Ray Whelan” contou. Schild ainda revelou que Valcke sabia do envolvimento do diretor da Match. “Ele nos disse que Whelan vendia entradas por muitos e muitos anos no mercado negro”, indicou. “Valcke nos disse que teriam de cuidar primeiro de tirá-lo da cadeia no Brasil”, contou. “Não sabemos o que ocorreu com os 8 mil ingressos. Mas só sabemos que Ray foi preso”, completou Alon.
Outro lado
No Brasil, o diretor da Match foi liberado e o caso foi encerrado. Procurada, a Fifa não se pronunciou durante todo o dia. Mas, extraoficialmente, Valcke mandou recados de que é inocente, de que jamais recebeu dinheiro de Alon e que o contrato da JB foi encerrado justamente porque se descobriu que os ingressos eram vendidos acima do preço.
Valcke, que já deixou claro que deixaria a Fifa em fevereiro, vivia uma pressão ainda maior por uma renúncia diante das revelações. Há três meses, documentos apontaram que ele sabia e assinou a transferência de US$ 10 milhões para o ex-vice-presidente da Fifa, Jack Warner. O dinheiro foi considerado pelo FBI como suborno.