Drive to Survive: F1 renova e expande público com série da Netflix
Sucesso de público, documentário cativou muita gente que nunca ligou para a F1 e ajudou a categoria a se expandir
atualizado
Compartilhar notícia
“Drive to Survive é sobre Fórmula 1, mas na verdade é sobre drama interpessoal. Há jovens ricos que têm brigas de longa data e/ou histórias trágicas. Há chefes de equipe atacando uns aos outros por causa de motores e regulamentos obscuros. E há muitos pilotos batendo uns nos outros em carros engraçados. Basicamente, imagine ‘Real Housewives’, se as donas de casa estivessem dirigindo a 300 quilômetros por hora e, ocasionalmente, uma delas pegasse fogo”.
A descrição acima, da jornalista Byrd Pinkerton e publicada no Vox, é uma bela imagem e mostra o que Drive To Survive conseguiu fazer: transformar os dramas e histórias do esporte em grandes narrativas, como se fossem filmes ou, melhor ainda, um reality show, como Real Housewives, Casamento às Cegas e tantos outros que o público se acostumou a ver.
Em 2013, o filme Rush, do diretor Ron Howard, contou a história de uma grande rivalidade na F1 entre Niki Lauda e James Hunt. Muitas pessoas que nunca tinham acompanhado a F1 e sequer conheciam os personagens se encantaram com a história, mas a F1 nunca colheu quaisquer frutos – e nunca nem trabalhou para isso. No máximo, despertou nostalgia em fãs. Com Drive to Survive seria diferente.
Sean Bratches, o ex-diretor administrativo de operações comerciais da Fórmula 1, foi o “padrinho de Drive to Survive”, segundo Paul Martin, produtor executivo da série. Ele foi parte da operação que fez a Liberty Media se tornar dona da Fórmula 1 em 2016 por US$ 4,4 bilhões.
Bratches identificava o problema pelo qual Bernie Ecclestone, antigo dono da categoria, era criticado: a falta de presença digital. Ele identificava ali uma fraqueza da F1 e fechou um acordo com a Netflix, algo impensável na gestão anterior. A empresa contratada para transformar isso em realidade, a Box to Box Films, tinha uma missão clara: fazer algo muito diferente da cobertura ao vivo que já existia no esporte, segundo Paul Martin.
Não foi um processo simples, porque as duas principais equipes na época, Mercedes e Ferrari, se recusaram a participar do projeto. “Acho que havia uma sensação dos times de ‘vocês não sabem o que é este mundo’. Não acho que sabíamos e acho que eles estavam céticos se podíamos mesmo entregar o que estávamos dizendo”, contou Martin ao Guardian. “Queríamos entregar um retrato autêntico de como é realmente operar, viver e trabalhar no paddock”.
Eles conseguiram. A série teve adesão de oito das 10 equipes da F1, que forneceram acesso, ainda que relutantemente, às equipes da Netflix. A relação de confiança foi criada e as informações sobre as gravações, do seu conteúdo aos segredos das equipes não vazaram. “Demos às equipes a segurança que eles precisavam. Elas gostariam de muito mais. Mas isso deu à Netflix a confiança para capturar algo que iria ressoar com os fãs e que não fosse uma bobagem qualquer, mas conteúdo genuíno de bastidores como nunca foi visto”, afirmou Ian Holmes, diretor dos direitos de mídia da Fórmula 1, ao Guardian.
O fato de não ter as duas principais equipes poderia ser um problema grave, mas isso não impediu o sucesso da série. Pelo contrário. A Haas, única equipe americana no grid, ganhou protagonismo com seu chefe de equipe, Günter Steiner, se tornando um dos personagens mais populares, assim como os dois pilotos da equipe, Romain Grosjean e Kevin Magnussen. Histórias como a de Charles Leclerc na Sauber, como o garoto prodígio, foram também muito populares.
O sucesso da temporada de estreia mudou a opinião de Mercedes e Ferrari. “Me mostrou um novo ângulo para atrair uma nova audiência, diferente de como percebia a F1”, afirmou Toto Wolff, chefe de equipe da Mercedes, ao NY Times, ao explicar por que o time tinha mudado de ideia para a segunda temporada.
“Por muito tempo, foi um esporte muito fechado. Deixar algumas pessoas entrarem e mostrar a eles o quão incrível o esporte é, acho que é onde a série realmente fez bem para nós”, disse ao NY Times o piloto Daniel Ricciardo, atualmente na McLaren, um dos protagonistas da série com seu carisma e as mudanças de equipes vistas de dentro dos bastidores do paddock.
De olho nesse tema e no sucesso da série da Netflix e da Fórmula 1 nesses últimos anos, a Betway, site de apostas em Fórmula 1, resolveu analisar as mudanças ocorridas no esporte e montar uma série de infográficos com isso. Confira!
A revolução será postada
Drive to Survive é apenas a ponta do iceberg de uma mudança que começou antes disso. A Liberty Media comprou a Fórmula 1 em 2016 e tirou do comando Bernie Ecclestone, que comandava a categoria por 40 anos. Ele preferia atrair septuagenários ricos do que ir atrás de um público jovem, como relatou a agência Reuters em 2014. A Liberty Media queria o caminho oposto.
Em primeiro lugar, a Liberty Media criou um ecossistema nas redes sociais, que mudaram de meros reprodutores de conteúdos frios e vazios para algo vibrante, com vida e que vai além de mostrar fotos dos carros. Da própria F1 passou a sair muito conteúdo de dentro das pistas, como áudios e clipes das corridas com edição típica de canais de Youtube, até bastidores, memes e bom humor mostrando os pilotos fora das pistas e até da F1. Equipes e pilotos passaram a ser menos relações públicas e mais influenciadores. A F1 criou a F1TV, que passou inclusive a transmitir ao vivo as corridas. No Brasil, o serviço estreou em 2021.
Entre os pontos mais importantes está um rejuvenescimento que a F1 tem vivido. Uma pesquisa da própria F1 feita com a Motosport.com e a Nielsen mostra que, pela primeira vez desde 2005, quando essa pesquisa começou a ser feita, o maior público entre os respondentes é de pessoas de 16 a 24 anos.
Antes, o maior público era quase sempre o de 25 a 34 e, em 2010, o maior público foi acima de 45 anos. São sete edições da pesquisa feita com os fãs, com frequência que variou de 2005 até a edição mais recente, em 2021, mas a mudança de perfil é visível. Tanto que 34% do público que respondeu à pesquisa são novos fãs, ou seja, pessoas que acompanham o esporte há cinco anos ou menos.
Entre vários aspectos que a pesquisa mostra, um dos mais interessantes é o pedido para que os fãs escolham as palavras que acham que combinam mais com a F1. Pela primeira vez desde que a pesquisa começou, a palavra “divertida” entrou na lista, ao lado de outras presenças constantes como “tecnológica” e “cara”. Entretenimento. E, por isso, a série da Netflix tem um papel importante.
“Estamos focados no conteúdo que entregamos e no modo como entregamos. Nossa estratégia é seguir se esforçando nessa área. Continuar a oferecer uma transmissão com cobertura rica e envolvente, mas aumentando o conteúdo em outras formas menos tradicionais, por meio de mídias sociais, parcerias como a Netflix – que tem sido um grande sucesso – e por meio da mídia de consumo e mais mídias tradicionais”, diz o relatório da F1.
“Não era segredo que a F1 vinha lutando há anos para atrair fãs mais jovens e especialmente mulheres e esta pesquisa diz muito sobre a abordagem digital da nova equipe de gestão da F1 e do efeito funil de projetos como o Drive to Survive, da Netflix,que estão engajando uma nova geração de fãs apaixonados por F1”, diz o relatório da F1.
“Se a Pesquisa Global de Fãs da F1 2021 nos diz alguma coisa é que a estratégia da gestão da F1, bem como das equipes e pilotos para engajar novos públicos por meio das mídias digitais e sociais, está funcionando. O sucesso da série documental de bastidores ‘Drive to Survive’ da Netflix foi abrir o esporte para públicos novos, mais jovens e mais diversos, tornando o esporte mais acessível. E o funil está funcionando à medida que novos fãs se envolvem com o rico conteúdo de mídia social oferecido pela F1, pelas equipes e pilotos, bem como por plataformas de mídia independentes. Também é claramente um fator contributivo no ranking desta vez em pilotos e equipes favoritos”, diz o relatório.
De empresa de esporte a empresa de entretenimento
Poucos conseguiram explicar melhor o que a Liberty Media encontrou ao comprar a F1 e para qual direção ela quer levar o esporte do que Sean Bratches, ex-diretor administrativo de operações comerciais da Fórmula 1. “Em um sentido mais amplo, estamos tentando reposicionar a F1 de uma empresa de automobilismo para uma marca de mídia e entretenimento”.
“O que adquirimos foi uma empresa de automobilismo dura e verdadeira. E o que estamos tentando fazer é transformá-la em uma marca de mídia e entretenimento com o coração e a alma de um piloto de corrida no meio disso”, afirmou Bratches, em entrevista à CNBC, nos Estados Unidos, em abril de 2018. Pouco menos de um ano depois, em março de 2019, a Netflix lançou a primeira temporada de Drive to Survive.
“A Fórmula 1 continua a se beneficiar da sua estratégia de expandir o seu conteúdo oferecido – seja por meio de programação adicional de periféricos e narrativas – que atrai esse mercado de 16 a 35 anos”, afirmou Tom McCormack, chefe de direitos de transmissão na Nielsen Sports, no relatório da F1.
“O atual grid de jovens pilotos, experientes em mídias sociais, como Lando Norris, está ajudando a alcançar novos consumidores por meio de plataformas como Twitch e Youtube. Ao adotar essas plataformas, bem como serviços de streaming como a Netflix, com sua série Drive to Survive, a Fórmula 1 agora está mais bem posicionada para converter os recém-chegados ao esporte em fãs de longo prazo e gerar níveis de interesse sem precedentes”, disse ainda McCormack. A Nielsen prevê que a Fórmula 1 deve alcançar um bilhão de pessoas interessadas no esporte em 2022.
Os personagens de dentro do grid também veem os efeitos da série. “Surpreendeu todo mundo quanto impacto a série teve”, afirmou Zak Brown, CEO da McLaren, à Business Insider em 2021. “Tem sido um sucesso real para a F1. Se fosse apenas uma série sobre carros em uma pista, talvez não fosse um sucesso, mas quando você entra na política, nas mudanças, nas rivalidades, e é sempre isso que está acontecendo, não vejo razão para não poder continuar por um muito tempo”.
Chefe de uma das mais tradicionais equipes do automobilismo mundial, Brown comemorou o sucesso e disse que a audiência “já passou de 50 milhões”, com a terceira temporada sendo mais assistida que a primeira.
A Netflix não confirma a audiência, mas o número descrito por Brown colocaria a série entre as mais assistidas entre as originais do serviço de streaming mais popular do mundo. “A audiência da F1 está crescendo no mundo todo por causa da série”, afirmou Ted Sarandos, co-CEO e diretor de conteúdo da Netflix na Code Conference, em Los Angeles, em outubro de 2021. Foi um tiro certeiro.
Impacto significativo nos Estados Unidos
Drive to Survive teve impacto no mundo todo, mas foi nos Estados Unidos que pareceu ser ainda maior. É o país onde a Netflix tem o maior número de assinantes, 60 milhões. Isso, porém, significa um público potencial, mas como os americanos se interessariam por uma categoria que sempre teve o DNA europeu? Bom, Drive to Survive transformou os pilotos e chefes de equipe em personagens de um reality show.
A ESPN, que transmite a F1 no país, viu a audiência aumentar desde que a série começou a ser exibida pela Netflix, em 2019. A emissora informou que a média de pessoas que assistem às corridas passou de cerca de 547 mil por corrida em 2018 para 934 mil em 2021. O aumento de audiência foi de 56% em relação à temporada 2020 e 41% em relação à temporada 2019.
“A Netflix não fez mal, certo? Não tem como quantificar isso, mas acho que todos concordamos que certamente ajudou. Trouxe para perto um fã mais casual que provavelmente nem era um fã de Fórmula 1. Vejo pessoas postando nas mídias sociais, atletas e outros, dizendo ‘eu não era um fã de Fórmula 1, mas agora estou engajado e não posso esperar para assistir o próximo episódio ou temporada da série da Netflix ou assistir as corridas’. E certamente nos beneficiamos com isso”, afirmou John Suchenski, diretor de programação e compras de eventos da ESPN dos Estados Unidos à revista Racer.
Não foi apenas na TV que o impacto foi sentido. O GP dos Estados Unidos viu um aumento significativo no público presente no fim de semana de corrida desde que a série começou. Em 2019, o público foi 268 mil pessoas, um aumento de 15%.
A pandemia da COVID-19 fez com que não houvesse o GP em 2020, mas ele voltou em 2021 de forma avassaladora: 400 mil pessoas assistiram ao fim de semana da corrida, um recorde. Nunca uma corrida teve um público desse tamanho. Superou a corrida do Reino Unido, tradicionalmente com muito público e que teve 356 mil pessoas em 2021.
O próprio promotor da corrida dos Estados Unidos, Bobby Epstein, que acontece no Circuito das Américas, em Austin, no Texas, admite que a série teve uma grande influência nessa popularização da categoria no país.
“Não tivemos uma corrida em dois anos e acho que a popularidade da série cresceu com isso. Só agora estamos vendo isso. Podemos definitivamente atribuir esse crescimento à série da Netflix, já que as pessoas conseguem acesso às personalidades nos bastidores. Isso definitivamente abriu alguns olhos, há pessoas prestando atenção aqui”, afirmou Epstein após o GP dos EUA, em 2021.
“Comecei a receber muito mais mensagens e menções, especialmente dos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, teve um impacto grande quando a série saiu a cada ano. Agora tenho mais seguidores americanos”, afirmou Pierre Gasly, piloto francês da Alpha Tauri, ao comentar sobre o assunto antes do GP dos EUA.
Lando Norris também sentiu o impacto dos americanos nas suas redes sociais. “Do ponto de vista de fãs americanos, há muito mais deles. Pessoas que conheci entraram no automobilismo e se tornaram fãs não apenas meus, mas da Fórmula 1, apenas assistindo ao Drive to Survive”, disse o piloto da McLaren, também antes do GP dos EUA.
“Ter conteúdo adicional da Fórmula 1 que alcance um público amplo e diferente ajuda a aumentar a conscientização e o interesse, e esperamos incentivá-los a sintonizar as corridas”, afirmou John Sucheski, da ESPN. “Uma maré alta levanta todos os barcos”.
Zak Brown, CEO da McLaren, aumenta a empolgação com os efeitos da série nos Estados Unidos. “É um esporte tão fascinante, com política e personalidades”, afirmou Brown. “Acho que ‘Drive to Survive’ acertou em cheio e expôs isso ao mundo, e parece ter realmente ressoado nos EUA”.
“É inacreditável as reações das pessoas. Nossa série só funciona porque, na verdade, o esporte é um espetáculo incrível. É incrivelmente dramático e tenso. Há erros, há grandes personagens. Nossa série só ilumina o que já está lá”, afirma Paul Martin, produtor executivo de Drive to Survive.
O sucesso de Drive to Survive levou o mundo do esporte a olhar ainda mais para os documentários. Tênis, a Moto GP e golfe são esportes que já procuraram a Netflix para séries documentais seguindo a mesma linha e devemos ter mais desse tipo no futuro.
No dia 11 de março estreia a quarta temporada, que mostrará os bastidores de um dos maiores anos da F1 na história, com o título inédito de Max Verstappen em uma disputa feroz com Lewis Hamilton e uma emocionante, conturbada e polêmica corrida final em Abu Dhabi. A F1 encontrou sua galinha dos ovos de ouro com a série na Netflix: novos e ávidos fãs por mais temporadas do esporte – e da série.
E que verdade seja dita: que a série é um sucesso é inegável. Mas, agora, é inegável também a importância que Drive to Survive teve na explosão da F1 nesses últimos anos. E os números só tendem a crescer ainda mais.