Tráfico de obras de arte prejudica mercado e patrimônio cultural
O tráfico de bens culturais no Brasil, além de impactar negativamente o mercado de arte, causa danos ao patrimônio cultural do país
atualizado
Compartilhar notícia
O roubo audacioso de 13 obras de arte no Museu Isabella Stewart Gardner, em Boston, ainda ecoa como um dos maiores mistérios não resolvidos do mundo da arte. Retratado no documentário O Maior Roubo de Arte de Todos os Tempos ( Netflix), o episódio expõe as vulnerabilidades do mercado artístico. Esse crime é apenas um capítulo, cinematográfico, é verdade, de uma prática que gera danos ao patrimônio cultural do Brasil e de vários outros países.
O tráfico de bens culturais no Brasil é uma prática que tem causado danos profundos ao patrimônio histórico e cultural do país, além de impactar negativamente o mercado de arte. Dados fornecidos pela Polícia Federal e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) ao Metrópoles revelam a dimensão do problema e os desafios enfrentados para combatê-lo.
As obras de arte, especialmente as de natureza sacra e as esculturas, são alvos frequentes dos traficantes no Brasil. De acordo com a Polícia Federal, entre 2019 e 2024, foram registrados 27 casos de tráfico envolvendo itens religiosos de arte sacra e 3 casos de esculturas roubadas ou traficadas. Esses números, que refletem apenas as investigações em nível federal, demonstram a vulnerabilidade dessas peças, muitas delas insubstituíveis, constituintes das construção de templos religiosos e de grande valor histórico e cultural.
Além disso, o tráfico de obras de arte gera um ambiente de insegurança no mercado de arte, desestimulando a compra e venda legítima de peças, segundo o Iphan. Quando obras roubadas ou traficadas entram em circulação, a autenticidade e a procedência das peças tornam-se incertas, criando um clima de desconfiança entre galerias, colecionadores e investidores. Isso pode levar à retração comércio, afastando interessados e reduzindo o valor das transações.
Métodos de tráfico e rotas internacionais
Os traficantes de obras de arte utilizam métodos variados para contrabandear essas peças para fora do Brasil, de acordo com a PF. A venda e o leilão on-line são estratégias comuns, facilitadas pela falta de regulamentação adequada em algumas plataformas virtuais. Além disso, portos e aeroportos são frequentemente usados para exportar obras de arte disfarçadas como objetos comuns, o que, ainda segundo as autoridades, dificultaria sua detecção por autoridades alfandegárias.
A PF identificou que as principais rotas internacionais para o tráfico de obras de arte brasileiras incluem destinos na Europa e América do Norte, com destaque para os Estados Unidos e Alemanha. Esses mercados, conhecidos pela alta demanda esses produtos, acabam atraindo traficantes em busca de lucros elevados.
Problema histórico
Leandro Grass, presidente do Iphan, garante que o problema não é atual e vem sendo combatido pela autarquia federal, que é vinculada ao Ministério da Cultura.
“O tráfico ilícito de bens culturais é um problema histórico que o Brasil herda desde o período colonial, e quando da República, especialmente da Constituição de 88 para cá, nós tivemos um incremento da forma de combate a esse tipo de crime, já com êxito em várias situações, inclusive com repatriação de bens culturais que foram parar em outros países, e hoje o governo federal dispõe, em especial através do Iphan, de uma estrutura e de uma metodologia para o controle de entrada e saída de bens culturais, de obras de arte e também de fiscalização, em especial naqueles bens tombados ao nível federal”, salienta Grass.
A Arte do Descaso
Em seu livro Arte do Descaso, lançado em 2016, a jornalista Cristina Tardáguila aborda a história do maior roubo de museu do Brasil, o furto de obras de arte do Museu da Chácara do Céu, no Rio de Janeiro, em 2006.
Durante o Carnaval, quatro pinturas foram roubadas por um grupo de ladrões que se aproveitaram do momento de distração geral para cometer o crime. As obras, que incluíam peças de Picasso, Matisse, Monet e Dalí, nunca foram recuperadas, e o caso se tornou um dos maiores mistérios do mundo da arte no Brasil.
No livro, Tardáguila combina relatos de testemunhas, documentos oficiais e entrevistas para traçar uma narrativa reveladora sobre a negligência no trato com a arte no Brasil, como uma crítica ao sistema que permitiu que ele acontecesse e à apatia em relação ao patrimônio artístico nacional.
Em entrevista ao Metrópoles, a autora do livro reafirma o descaso das autoridades e da população esse tipo de crime e destaca a gravidade.
“O roubo de arte não desperta comoção popular, ainda mais num país como o nosso, em que a arte não é tão valorizada. Ele chega ao noticiário quase como uma anedota, quase como um conto. E isso não é nada glamouroso, é o contrário do que os filmes de Hollywood pregam. Ele é tão importante quanto o tráfico de armas, contra o tráfico de diamantes, contra o narcotráfico. Ele, na verdade, faz conexão com esses outros crimes”, conclui.