Tradução e dança: os animados bastidores dos intérpretes de Libras em lives
Embalados pelos mais diversos ritmos, eles entram no clima e se divertem ao traduzirem as canções para os deficientes auditivos
atualizado
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A crise na indústria cultural devido à pandemia do coronavírus fez os artistas se abrirem para um novo mercado: o, até então, pouco explorado universo das lives. Mas não são só os cantores famosos que estão fazendo sucesso com os shows on-line. Intérpretes de Libras têm se destacado durante as apresentações virtuais. Embalados pelos mais diversos ritmos, eles entram no clima e se divertem ao traduzirem as canções para a comunidade de deficientes auditivos.
O êxito dos tradutores-intérpretes de Libras (TILS) é tamanho que, em meio a performance de ídolos nacionais como Marília Mendonça, Gusttavo Lima e Bell Marques, eles dominam a lista de assuntos mais comentados das redes sociais.
“Encare a vida com alegria como o intérprete do Bell Marques”, disse um usuário no Twitter. “Eu tô amando o intérprete de Libras da live de Bell Marques, já quero ser amiga dele”, elogiou outra internauta. “O trabalho mais difícil do dia é o do intérprete do Gusttavo Lima”, brincou outro seguidor sobre a bebedeira do sertanejo.
Responsável pela tradução da live do ex-Chiclete com Banana Bell Marques, realizada no último dia 25 de abril, a equipe formada por Dêvysson Barbosa, de 29 anos, Janah Lima, 26, e Roberto Carlos, de 31, conversou com o Metrópoles. Os profissionais falaram sobre a fama repentina, o mercado de trabalho para os intérpretes e contou detalhes dos bastidores dessas produções que animam a quarentena dos brasileiros durante o isolamento social.
Eu tô amando o intérprete de Libras da live de Bell Marques, já quero ser amiga dele! pic.twitter.com/RIwcVv99vs
— Cika Batista cansada de guerra (@aquelacika) April 25, 2020
Repercussão
“Ainda somos desconhecidos para boa parcela da sociedade. São em momentos como as lives que as pessoas podem perceber a riqueza e a complexidade do nosso trabalho”, afirma Roberto Carlos.
Apesar da parte boa da fama repentina, Dêvysson não vê com bons olhos alguns comentários sobre o trabalho dos intérpretes nas redes sociais. “Quanto aos memes, a comunidade surda e nós, os intérpretes de Libras, repudiamos. A nossa profissão não é brincadeira e a língua de sinais não é para ser engraçada”, considera.
A opinião mais dura de Dêvysson é compartilhada pelos colegas. “Costumo comentar que é uma faca de dois gumes: de um lado a visibilidade faz com que seja mais natural a presença do intérprete de Libras em todos os espaços e pessoas comecem a entender que há uma outra língua, cultura e diversidade. Por outro, há piadas sendo preconceituosas e enfraquecendo toda uma luta. Essas brincadeiras de mau gosto ferem o sujeito surdo”, explica Janah Lima.
Dêvysson ressalta entender que, nem sempre, os memes são feitos com a intenção de zombar do profissional ou da língua. “Mas é interessante nosso posicionamento visando educar as pessoas para entenderem que essa prática agride a um grupo que lutou muito pra ter sua língua reconhecida”, completa.
na moral o melhor intérprete tava na live do bell marques pic.twitter.com/cirFlLYPE4
— pedro (@tricolwr) April 27, 2020
Bastidores das lives
Roberto Carlos revela que as lives são muito diferentes de outros trabalhos de tradução. “O tempo entre sua produção e execução é muito curto”, relata. Entre os desafios, está a necessidade de decorar o repertório do artista em um prazo máximo de 48h. “Passamos a noite acordados, estudando as canções o máximo que podemos”, completa.
Contudo, nem todo esforço é capaz de livrar os intérpretes de algumas saias justas, como quando o artista inclui canções no show que não estavam programadas. “Isso exige do intérprete jogo de cintura, capacidade e saúde emocional para lidar com a pressão do inesperado”, pontua Roberto.
Para Janah Lima, o mais marcante do bastidores das lives é o espírito de equipe entre os intérpretes que se revezam nas traduções.
“A gente dá água um ao outro, nos preocupamos com a imagem passada, vibramos com os termos de tradução que têm encaixes perfeitos na frase, aplaudimos, choramos, animamos um ao outro quando começa a bater o cansaço. Não é fácil traduzir 80 músicas numa única noite. É um trabalho alucinante de lindo, só vendo para sentir tamanho trabalho de equipe”, ressalta Janah.
Mercado
No momento em que o Brasil perde muitos postos de trabalho devido à pandemia do coronavírus e à medida de isolamento social recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), as lives têm sido uma janela importante para a promoção do trabalho do intérprete de Libras.
Segundo Roberto, sem as escolas, eventos e formações presenciais os profissionais ficam sem meios de atuar e conseguir renda. “A live tem aquecido o mercado para TILS e tem sido fundamental para a subsistência de muitos deles”, garante.
Janah Lima ressalta que mesmo antes da pandemia já era uma profissão em ascensão, que estava se estabelecendo a partir das lutas da comunidade surda em prol da efetivação das leis de acessibilidade comunicacional. Em 2016, foi sancionada a Lei Nº 13.409, que reserva vagas para pessoas com deficiência nos cursos técnicos de nível médio e superior das instituições federais de ensino.
Dêvysson conta que, no mesmo período, surgiram empresas de prestação de serviços particulares de tradução para atender ao terceiro setor e a demanda de espetáculos, shows e apresentações culturais variadas. Portas que ele espera que se mantenham abertas após o fim do confinamento.