The Loudest Voice: série traz Russell Crowe no papel de Roger Ailes
Executivo da Fox foi acusado de legitimar teorias de conspiração racistas e de ter assediado sexualmente várias mulheres
atualizado
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Russell Crowe quer que você saiba que o seu processo de preparação para um papel não é de modo nenhum interessante. Mas as pessoas sempre querem saber. (E não pergunte a ele.) Mas suponhamos que você pergunte. Foi difícil entrar na cabeça de Roger Ailes (1940-2017), o homem que, no comando da Fox News, foi tão odiado quanto reverenciado? Um indivíduo acusado de legitimar teorias de conspiração racistas e de ter assediado sexualmente várias mulheres?
Talvez. Mas essa pergunta também é errada. Você provavelmente já tem sua opinião sobre Ailes, figura central na série The Loudest Voice, que estreou no fim de junho nos EUA. Crowe, que interpreta Ailes, não está interessado nas opiniões a respeito do seu personagem. Ele tem a sua própria.
E sua opinião é de que Ailes – aguerrido conservador, com um enorme poder de influência, defensor do Natal – era mais complicado do que seus inimigos afirmavam. “A única coisa que soube a respeito de Roger, ao conversar com pessoas que o amavam – e foram muitas – é que era uma pessoa de muito charme, amável e muito leal”, disse Russell.
Nem todos os envolvidos na série se mostram tão benévolos com Ailes que, dois anos após sua morte, ainda é uma figura polarizadora. Não o showrunner, tampouco o homem cujas reportagens inspiraram a série.
“Tipo complicado”
Então, quando foi lançada, a imagem de Ailes na tela era o produto de anos de luta, discussões, roteiros escritos e reescritos, ameaças de morte, calúnias e fontes anônimas; de interpretações que se chocam e verdades tenebrosas. Em outras palavras, a série mostra o legado de um homem que Crowe descreveu como um “tipo muito complicado”.
Adaptada da mordaz biografia não autorizada escrita por Gabriel Sherman (2014), The Loudest Voice in the Room, e sua reportagem para a revista New York, a série se concentra nas quase duas décadas que Ailes passou criando a Fox News do nada e transformando-a na rede de notícias mais vista dos Estados Unidos.
Ao realizar essa tarefa, ele também se tornou uma das pessoas mais influentes no país, um formador de opinião poderoso por meio de âncoras populares do canal, como Glenn Beck e Sean Hannity (interpretados na série por Josh McDermitt e Patch Darragh).
Ao mesmo tempo, os ataques violentos, partidários e paranoicos da Fox News, afirmando que Barack Obama era racista ou sugerindo que uma eleição poderia ser fraudada contra Donald Trump, levaram Ailes a ser detestado pelos detratores da rede de televisão.
Criar sete episódios em torno de um protagonista tão polêmico foi complicado. Encontrar o tom certo e a apresentação correta envolveu muitas negociações, contou Alex Metcalf, o showrunner.
“Honestamente, brigamos muito”, afirmou ele, referindo-se às suas discussões com Crowe. “Ele é um ator com um ponto de vista forte, mas se você tem uma opinião diferente que faz sentido, ele ouve.”
Caso complexo
No final, ambos parecem satisfeitos com o resultado. Com base nos quatro episódios liberados para os jornalistas, a série admite alguma complexidade no caso de Roger Ailes: nascido de uma família da classe operária, sua hemofilia, o pai abusivo, a mulher (interpretada por Sienna Miller) e o filho amado. Mas a série não evita falar da intimidação, da paranoia, do racismo e da misoginia.
“Russell fez muita pesquisa. Não significa que quis fugir de qualquer coisa medonha inerente a Roger; ele tinha de interpretar esse personagem e retratar o homem em todo o seu contexto”.
(Russell Crowe disse que teve um relacionamento pessoal com o chefe de Ailes, Rupert Murdoch, e o sobrinho dele, Lachlan, ambos australianos, mas se encontrou com Ailes apenas uma única vez.)
Adaptar a biografia escrita por Sherman para a TV parecia menos urgente quando o livro foi publicado. Sherman e sua mulher, a jornalista Jennifer Stahl, começaram a escrever um roteiro, mas o projeto foi deixado de lado por causa de outros compromissos.
Mas então, em 2016, irrompeu o escândalo envolvendo assédio sexual. Não muito tempo depois, o livro e o roteiro inacabado foram escolhidos para ser transformados em uma série.
Ailes ainda estava vivo quando os trabalhos de adaptação começaram. Sua morte repentina em 2017 mudou tudo. “Sua morte certamente nos liberou num certo sentido porque, por exemplo, tínhamos uma ideia clara do final”, afirmou Sherman, que escreveu vários episódios, incluindo o piloto. “Ailes era uma pessoa belicosa e difícil, portanto o fato de ele não estar ali para brigar quando desenvolvemos a série certamente foi um obstáculo a menos.”
Sherman sofreu muito com essa belicosidade. Quando se documentava para escrever o livro, Ailes estava no auge do seu poder. A situação ficou difícil. “Não tinha a mínima ideia, quando comecei a escrever, no início de 2011, de que seria uma odisseia surreal. E ele tinha uma sala secreta de agentes políticos criando websites para manchar minha reputação e usando meios às vezes antissemitas”, revelou ainda.
(A Fox News negou publicamente que seu departamento de relações públicas tenha coletado informações sobre ele que seriam usadas para desacreditá-lo.)
Depois de entrevistar mais de 600 pessoas com alguma conexão com Roger Ailes e acabar recebendo uma ameaça de morte, as opiniões de Sherman sobre o caráter do sujeito ficaram claras. “Acho que Ailes era racista”, comentou ele, sublinhando o que chamou de “sua profunda desconfiança dos imigrantes” e “um ódio profundo de Barack Obama”. Quanto aos problemas de Ailes com mulheres, ele “sabia que as comportas seriam abertas num determinado momento. Só não sabia quando”.
Vozes que saíram do silêncio
Essas mulheres também eram complicadas. Gretchen Carlson, ex-âncora da Fox, entrou com uma ação judicial, que deu início à queda de Ailes e levou a fatos que derrubaram também Bill O’Reily, âncora da Fox. Mas ela também era o rosto de uma organização que havia devotado muito tempo de programação à noção racista de que Obama tinha nascido no Quênia.
Naomi Watts, que interpreta Gretchen Carlson na série, lembrou ter ficado empolgada em encarnar uma personagem que considera uma heroína corajosa, mas complexa.
Como Christian Bale no papel de Dick Cheney em Vice, Russell Crowe teve de exagerar no látex para ficar com a aparência de Ailes, mais velho, careca e a papada pronunciada. O que significou passar cada dia das filmagens, que duraram quase quatro meses, uma média de quatro horas na cadeira de maquiagem.
“Com o tempo adquiri muita experiência em próteses – quero dizer, veja o caso de Cinderella Man: orelhas, nariz falsos, o bico de viúva na testa, tudo isso. Foi difícil quanto estava na iminência de gravar, olhar e perceber que ia ser muito difícil.”
Foi uma transformação completa. Crowne procurou representar Ailes do modo mais verdadeiro possível. Ninguém é o vilão da sua própria história de vida, o que significou tornar o intensamente polarizador Ailes o herói da sua narrativa.
“Não posso fazer um julgamento do personagem e interpretá-lo ao mesmo tempo. Tenho minhas próprias opiniões, mas não posso retratar Roger a partir de uma perspectiva externa, e sim de uma perspectiva interna, e como ele se via”, garantiu Crowe.
Apesar de todo o lucro que Ailes propiciou durante sua carreira, ele foi destroçado por um coro de vozes que por muito tempo silenciaram e ficaram fortes demais a ponto de prevalecer até mesmo sobre o chefão da Fox News. The Loudest Voice funcionou como título, explicou Metcalf, porque descreveu não só Ailes e a Fox. Em última análise, descreveu Gretchen Carlson também.
“Embora a série seja sempre sobre Roger Ailes, a voz dela se torna primordial. Gretchen, no final, é que tem a voz mais forte, não Roger.”