O Escolhido, da Netflix, traz Brasil real para a ficção científica
A produção mergulha em crenças e debates dos recantos sertanejos do país
atualizado
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Um dos grandes méritos da ficção científica (sci-fi para os mais íntimos) é discutir o presente por meio de projeções futuras ou exageros estéticos. Durante muito tempo, o gênero demonstrou sua força no cinema norte-americano, com algumas inclusões pelas bandas brasileiras. No universo das séries, os dilemas nacionais foram tratados na distopia social 3% e agora, novamente, em O Escolhido. O seriado da Netflix mergulha no Brasil real, longe do eixo Rio-São Paulo, com suas crenças, mitos e regionalismo, para debater religião e ciência.
A trama de O Escolhido se passa no isolado município de Aguazul: lá, ninguém adoece. Portanto, a população se revolta contra um trio de médicos – Enzo (Gutto Szuster), Lúcia (Paloma Bernardi) e Damião (Pedro Caetano) – determinado a vacinar os habitantes do local. Mesmo depois de expulsos e ameaçados, os profissionais de saúde (movidos por uma estranha determinação) decidem medicar o povoado a qualquer custo. Neste cabo de guerra, descobrem que a região é dominada por um curandeiro, O Escolhido (Renan Tenca), responsável por curar a todos.
Mitos
Há aí elementos típicos da cultura regional brasileira, por vezes, ignorada nos grandes centros urbanos. Mandonismo (a sujeição de uma população a um líder), religião, mitos formadores, relação com indígenas e disputas por terra. Todos esses elementos estão presentes no roteiro de O Escolhido, que é uma adaptação da mexicana Niño Santo. O curandeiro se vê como um filho de Deus, responsável por manter o bem-estar de toda aquela população. Aguazul precisa ficar isolado, para não atrair a atenção de doentes do mundo inteiro e transformar o local em um centro de peregrinação de enfermos.
Isso, é claro, caso você acredite nos poderes de O Escolhido. Para os seguidores da seita, ele só pode curar seus fiéis, pois são eles humanos livres do pecado original, não maculados pelo erro de Adão e Eva. Sim, o profetismo curandeiro do personagem encontra lastro na mitologia católica – algo nem mesmo inédito na história sertaneja do Brasil, que o diga Antonio Conselheiro, João dE Deus etc. Os mais céticos, olham para a figura religiosa como um charlatão, que usa ervas e conhecimentos para trazer algum tipo de bem-estar à população e dominá-la.
Na contextualização, O Escolhido acerta ao mostrar que figuras religiosas, no Brasil real, criam uma estranha relação com o poder: reúnem milícias para o proteger, dominam cultural e politicamente o povoado, criam regras de conduta. E, como numa parábola da intolerância crescente do mundo real, estipulam o “forasteiro” como o inimigo comum. Há diversas associações na trama do seriado da Netflix.
Erros e acertos
Se a produção acerta na construção de um universo no qual poder, ciência e religião seguem em permanente conflito, falha na condução da história. Há diálogos que nada dizem e tramas paralelas que servem apenas como pretexto para nudez. Esses deslizes são corrigidos, em parte, pela capacidade que o roteiro tem em prender sua atenção e na acertada opção por não entregar respostas fáceis.
Mesmo com algum alto grau de cafonice e escolhas duvidosas da direção, o seriado é viciante: ficando difícil não assistir de uma única vez os seis episódios da primeira temporada. Seguindo uma tendência atual, ao terminar os capítulos, a trama deixa pontas abertas que apontam para uma conspiração maior a ser trabalhada numa segunda temporada. Com pontos negativos e positivos, O Escolhido consagra um bom cenário para um sci-fi brasileiro na Netflix.
Avaliação: Bom