Nova série da HBO mostra que escravidão ainda é realidade no Brasil
Produção de Bruno Barreto e Marcelo Santiago revela engrenagem da exploração no Brasil e as marcas deixadas na vida das vítimas
atualizado
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Mais de 132 anos se passaram desde que a Lei Áurea foi assinada no Brasil. Apesar disso, novos casos de trabalho análogos à escravidão continuam interrompendo os sonhos de milhares de pessoas, de todas as partes do país — na cidade, no campo ou no interior das chamadas “casas de família”.
É sobre essa triste realidade que os diretores Bruno Barreto (Dona Flor e Seus Dois Maridos e O Que É Isso, Companheiro?) e Marcelo Santiago (Barretão, A Mulher do Meu Marido e Vampiro 40º) se debruçam Em Escravidão no Século XXI, minissérie documental que estreou na HBO na última terça-feira (4/5), e pode ser vista tanto no canal de TV a cabo quanto no serviço de streaming da emissora.
Ao longo de cinco episódios, a dupla de cineastas conta a história de vítimas da escravidão contemporânea, incluindo a da dona de casa Gabriela Jesus Silva, natural de Cansanção, no interior da Bahia, que chocou o país em 2008. Ainda criança, ela deixou a casa dos pais a mando deles para viver em Salvador, com uma professora, que prometeu pagar escola, universidade e tratá-la como filha. A promessa, no entanto, era falsa e Gabriela passou a ser tratada como escrava, sendo surrada e trancada em casa, de onde só saía para comprar pão para a família.
“Eu gosto muito desse episódio porque nossa preocupação foi focar na condição humana. Entrar um pouco na essência do ser humano, entender o que leva as pessoas a se sujeitar a isso. Em um episódio mais adiante, falamos dos reincidentes. Porque eles recebem uma indenização, e aí? Vivem três, quatro meses, mas depois não encontram emprego e muitos acabam voltando para a mesma situação”, destaca o diretor Bruno Barreto, em entrevista do Metrópoles.
A ideia de transformar relatos sobre o regime de exploração em um produto audiovisual foi do pai de Bruno, o também cineasta Luiz Carlos Barreto, que assina a produção da minissérie. O veterano se inspirou no livro Pisando Fora da Própria Sombra: A Escravidão por Dívida no Brasil Contemporâneo, do padre Ricardo Rezende.
Na obra, o autor narra a história de um dos casos mais emblemáticos dos anos 1990: o de Zé Pereira. O homem fingiu estar morto, após tomar um tiro de um capataz, e depois denunciou as condições de trabalho da fazenda onde sobrevivia, no Pará. Seu apelo por Justiça foi parar na Organização dos Estados Interamericanos (OEA) e impulsionou políticas de combate a esse tipo de crime no país.
Zé Pereira aparece no segundo episódio, após grande esforço do diretor Marcelo Santiago para localizá-lo. “O Zé mora escondido até hoje porque ele tem medo de ser abordado por seus algozes, pessoas que foram condenadas, inclusive internacionalmente, por conta do caso dele. Seu paradeiro é bem difícil, pouca gente sabe onde ele está. Mandamos uma equipe que passou uma semana procurando por ele”, relata Marcelo.
Marcelo Santiago, cineasta
Outro desafio foi conseguir que empresas e pessoas denunciadas por exploração dessem seus depoimentos. “Apenas a Zara falou”, revela Bruno.
“A Zara fez questão de falar e dar um depoimento para dizer o que eles fizeram. Não vou dar mais detalhes se não vira spoiler, mas achei que foi uma atitude muito bacana e inteligente. Veio um diretor de Barcelona para cá para explicar com resolveram o problema”, diz.
Bruno Barreto, cineasta e diretor de Escravidão - Século XXI
Além de seus personagens emblemáticos, a produção traz participações do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, do diplomata e ex-ministro das Relações Exteriores Celso Amorim e do jornalista Leonardo Sakamoto, que discorrem sobre a relação entre a escravidão moderna, a sociedade brasileira e o racismo como fio condutor dos problemas do país.
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O resultado é um trabalho forte e sensível, que pode mudar a forma como muitos telespectadores encaram a problemática. “Espero que uma pessoa comum, vendo essa série, possa se sensibilizar com a condição humana daquelas pessoas e comece a pensar a respeito”, diz Bruno.
Na avaliação dele, para além de denunciar casos de exploração, é preciso que os brasileiros entendam como essa funciona a engrenagem da exploração. “É algo diretamente ligado a concentração de riquezas, a desigualdade de renda. Sem dúvidas, é o maior problema que enfrentamos hoje, no mundo, pois compromete a sobrevivência da democracia”, conclui Barreto.