Dramaturgia fora do eixo: quando a novela sai da ponte Rio-São Paulo
Desde 2010, 24% das novelas exibidas pela Globo se passaram, exclusivamente, fora dos dois cenários tradicionais da emissora
atualizado
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Durante toda a exibição de Felizes Para Sempre? (2015), Brasília ficou em polvorosa. A minissérie passada na capital federal mexeu com os ânimos do público habitante do Distrito Federal, com reações variando desde o orgulho em ver a cidade representada na trama até a pecha com o tratamento das distâncias por aqui: o Lago Norte não é exatamente perto do Parque da Cidade, não é mesmo?
Desde 2010, a Globo exibiu 69 novelas e séries nos horários das 18h, 19h, 21h e 23h. Destas, 27 se passaram, exclusivamente, no Rio de Janeiro, 14 são ambientadas no estado de São Paulo e 17 delas, 24% do total, tiveram suas dramaturgias centradas fora desta ponte aérea. “Claro que a concentração de tramas sempre foi no Rio, até porque alguns dos principais autores da emissora moram lá. A própria Globo tem maior facilidade em produzir as coisas ali”, comenta Flávio Ricco, colunista especializado em novelas do portal Uol.
A assessoria de imprensa da emissora informou que a escolha dos cenários das novelas depende essencialmente da dramaturgia. Ainda assim, é possível notar algumas coincidências. Por exemplo, das 16 novelas das 19h exibidas, apenas uma teve cenas fora deste eixo: Alto Astral (2014-2015), que contou com cenas ambientadas no Espírito Santo.
No caso das minisséries e superséries, transmitidas no horário das 23h, os números surpreendem: das 22 produções lançadas nesta década, 12 foram escritas para ambientes fora do Sudeste brasileiro. “São produtos mais bem-acabados, diferenciados, onde pode-se mais facilmente abrir mão do eixo Rio-São Paulo. São obras mais curtas e mais baratas, o que facilita locações fora dos estúdios Globo”, argumenta o colega de Ricco, também colunista especializado no assunto, Nilson Xavier.
O crítico publicou recentemente em sua coluna um dado interessante: pela primeira vez desde o semestre inicial de 1989, todas as novelas em exibição pela emissora se passam fora das capitais paulista e fluminense. Orgulho e Paixão é ambientada na fictícia Vale do Café, no interior de São Paulo. A novela das 19h é Deus Salve o Rei (2018), uma trama de fantasia que nem se localiza no Brasil. Por fim, O Outro Lado do Paraíso (2017-2018) se passa em Tocantins.
“Variar cenários não altera a narrativa. A história de O Outro Lado do Paraíso poderia se passar em qualquer cidade do interior. Na verdade, essa mudança areja as ambientações”, opina Xavier.
Além das tramas exclusivamente fora do eixo Rio-São Paulo, a emissora ainda faz incursões em outras praças antes de se concentrar em cenários mais tradicionais. Um caso recente foi o de A Força do Querer (2017), única novela da década com cenas no Pará. “Eu acho que sempre é legal situar uma dramaturgia num ambiente específico. As séries americanas fazem isso muito bem. A história passa a ter um caráter único, só dela”, pontua a colunista especializada em televisão do jornal O Globo, Patrícia Kogut.
Um caso lembrado por Xavier é o de Em Família (2014), que teve as cenas iniciais gravadas na Cidade de Goiás, antiga capital do estado que leva o nome do município. A trama faz um salto no tempo, em que a família retratada na história se muda para o Rio de Janeiro. “Isso gera uma identificação com o público desses locais. Nessa novela, isso não foi por acaso: é um dos estados onde, historicamente, a Globo tem menos audiência. Logo, é para arregimentar audiência da região”, comenta o jornalista.
Por muitos anos, a emissora realizou cenas no exterior. No caso mais recente, em Os Dias Eram Assim (2017), algumas sequências foram gravadas no Chile. “O público gosta, vê coisas bonitas, mas este é mais um efeito cosmético. Sempre, invariavelmente, a novela passa para o Projac. É um atrativo, uma isca, algo avulso que geralmente não tem importância no coração da trama”, descreve Kogut.
Segundo Ricco, no caso das filmagens no exterior, a emissora teria outras intenções além da primordial, que é captar a atenção do público brasileiro. “A Globo tem um plano de negócios, com a intenção de ser transmitida em outros países. Filmar fora é uma maneira de conseguir a entrada nesses mercados. Já o brasileiro é atingido de A a Z! Quem conhece os lugares quer rever. Quem não conhece fica curioso”, se diverte.
Kogut destaca que, ao contrário das locações internacionais, os locais das tramas que se encontram no Brasil sempre são pelo menos referenciados no roteiro. “A TV aberta é para as massas. Quando você consegue levar essas histórias, teoricamente, mostrar o Brasil para o Brasil, você reflete. A TV tem esse papel de espelhar o imenso público que ela alcança”, analisa.