Diretor de Cracolândia sobre ataque com seringa: “Cobertura de guerra”
Para filmar o documentário premiado, Edu Felistoque teceu estratégias para se misturar e ser aceito por usuários de drogas e traficantes
atualizado
Compartilhar notícia
Edu Felistoque surpreendeu a todos ao seu redor quando decidiu gravar documentário na Cracolândia. A fim de retratar e compor a produção, o diretor ficou no local com uma cerveja em mãos, e, durante anos, passou oito horas por dia no que ele definiu como uma “cobertura de guerra”. O resultado, de acordo com o cineasta, foi traumatizante: lá, ele acompanhou tiroteios, presenciou uma mãe amamentando enquanto fumava crack, e chegou a ser atacado por um usuário de drogas, que lhe injetou seringa com líquido desconhecido.
O trabalho e percalços vividos durante as gravações deram frutos. Premiado em diferentes festivais ao redor do mundo, Cracolândia foi eleito o Melhor Documentário no Europa Film Festival, no International Film Festival de Seoul, e no International Festival Signs of the Night, em Berlim. “É assustador para eles verem a nossa Cracolândia, a forma que é colocada é de se assustar”, avalia Edu Felistoque, em entrevista ao Metrópoles.
Na produção, disponível no Brasil em plataformas selecionadas, como o iTunes, Google, Now (NET), Looke e Vivo Play, Felistoque retrata o estado de desumanização das pessoas que frequentam o local. “É lamentável, precisa ser muito frio. O que fiz, histórias que eu ouvi e vi, não conseguiria jamais filmar porque não teria estômago. Vi cadáveres. As pessoas morriam de overdose e ninguém mexia; ficava dias lá, até começar a se decompor. Mas era o cheiro que incomodava, e não a presença do cadáver”, afirma.
O diretor também contou que haviam “tribunais do crime organizado”, que julgavam se os dependentes químicos estavam dentro das leis criadas por eles. ” Lembro de mães chorando nas laterais da Cracolândia porque os traficantes não as deixavam entrar para buscar os filhos. [Eles] ainda davam golpes nelas: ‘ah, se você me der R$ 150, eu deixo você ver seu filho’; pegava o dinheiro, sumia e deixava a mulher esperando dias lá fora”, relata.
Cobertura de guerra
Conseguir presenciar e registrar essa rotina de degradação da Cracolândia não foi fácil. Ao chegar até o local, o cineasta não foi bem recebido pelos usuários, traficantes, e muito menos pela polícia. O produtor tentou, então, se misturar ao ambiente para conquistar a confiança e liberdade necessárias para filmar as histórias: deixou a barba e os cabelos crescerem e buscou usar roupas mais simples. Mesmo em um lugar hostil, Felistoque abriu mão de qualquer escolta, para deixar os personagens confortáveis. Nada foi filmado sem consentimento.
Eles me colocavam como um grande inimigo. Só depois de muito tempo, abriram alguns espaços. Era eu e uma lata de cerveja, que ficava 8 horas na minha mão, só para as pessoas verem que o meu ‘barato’ era outro. Me ofereciam drogas e, não, eu não usei. Eu tomava cerveja porque eu precisava entrar no bar e ficar observando as pessoas. O pessoal lá acabou se acostumando comigo. Foram estratégias de sobrevivência, de cobertura de guerra
Edu Felistoque
Ataque
No relato ao Metrópoles, Felistoque também contou de quando foi atacado por uma usuária de drogas, que lhe injetou uma seringa. “A pobre figura estava em um estado deplorável. Uma visão horrível, um farrapo humano. Em um surto, ela tirou uma seringa da bolsa e me golpeou. Foi muito traumático na hora, mas eu não guardo rancor nenhum, a pessoa estava realmente em um estado deplorável e pedindo ajuda, só nos olhos que você consegue ver esse pedido, então, eu deixei passar”, relembra.
Após a situação, o diretor correu para o Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, tomou um coquetel antidrogas e realizou inúmeros exames. Felizmente, não foi contaminado. “Depois desse atentado, eu parei para entender o que tinha acontecido. Passei um ano e meio com isso na cabeça. Depois disso, eu retornei porque eu queria reunir tudo em um filme só, em um lugar só, várias informações onde eu pudesse debater para chegar até uma conclusão, uma saída. Foi traumatizante, mas a gente seguiu”.
O documentário
Edu Felistoque também é diretor de uma série de TV, Buscando Buskers, que tem como objetivo mostrar o trabalho de artistas que se apresentam nas ruas. Foi atrás de novos personagens que o profissional teve a ideia de gravar na Cracolândia. No início, ele contou que teve resistência de sua equipe, mas insistiu na ideia.
“Eu me deparei com um verdadeiro inferno, as pessoas moribundas, caídas, uma feira de venda de drogas ao ar livre. E aí, eu falei: poxa, mas nada foi feito até agora por quê? Essa é a ideia, eu queria saber qual o problema de resolver isso. Então, bateu uma tristeza profunda, e eu esqueci o meu programa tão simpático, que é a série, e fiquei muito triste. A partir dali, eu não parava de pensar nisso”, conta o produtor, que gravou todo o documentário com um celular velho que tinha em casa.
“A gente abandonou qualquer estética convencional de documentários e partiu para tudo o que pudesse se documentar: câmeras de vigilância, celulares de terceiros, de quartos, banco de imagens. A gente partiu para crueza e resolvemos não ter esse cuidado fotográfico para tudo ser feito com delicadeza. Passei praticamente um ano e meio indo e voltando para a Cracolândia sozinho.”
Como o tema do documentário trata de drogas pesadas, o cineasta conta que foi muito difícil conquistar apoio financeiro para a realização. “Ninguém quer colocar a marca da sua empresa em um filme que fala de um assunto tão espinhoso. Foi difícil conseguir um patrocínio. A equipe foi se dispersando, já estavam se recusando até, porque era muito perigoso”, revela.
Além do Brasil, o diretor viajou para os Estados Unidos, o Canadá e alguns países da Europa, como a Suíça, para realizar as filmagens de Cracolândia. “A ideia era ir para fora e ver como as pessoas estão lidando com os seus problemas nas áreas de drogas. Eles atenuaram a dor de várias formas. Do crack, a gente não consegue utilizar os mesmos métodos deles, existem drogas medicinais que substituem a heroína, a cocaína, mas não existe nenhuma para substituir o crack”, pontua.
Repercussão
Mesmo com os prêmios conquistados, Felistoque ainda recebe palavras negativas sobre o filme. “A repercussão é muito positiva. Porém, muita gente me acusa de não respeitar a neutralidade de um documentário, que é o que precisa ser feito. Eu sofro, até hoje, de amigos meus, de críticos de cinema, de companheiros que sabem sim qual é a minha ideologia, mas virou fogo-amigo. Eu espero que essa discussão seja positiva para quem realmente precisa ganhar com isso, que são os dependentes”, considera.
Das vivências mais “obscuras”, Edu ainda pretende lançar um outro filme. Desta vez, como ficção. “Baseado nessas experiências que eu tive na Cracolândia, o filme A Primeira Célula contará desde o início da aventura. Vamos tentar rodar o mais rápido possível, talvez até o final desse ano”, adianta o cineasta.
Quer ficar por dentro do mundo dos famosos e receber as notícias direto no seu Telegram? Entre no canal do Metrópoles: https://t.me/metropolesfamosos.