Séries brasileiras têm DNA nacional e propriedade estrangeira: entenda
Sem regulação, propriedade intelecual de séries brasileiras de sucesso, como Cangaço Novo e Sintonia, ficam com as plataformas de streaming
atualizado
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Cangaço Novo, Sintonia e 3% são algumas das séries que romperam as barreiras do país onde foi ambientado e se tornaram fenômenos no mundo. Com atores, diretores, roteiristas e até produtoras brasileiras, essas obras têm o DNA nacional, mas não pertencem ao país. A propriedade patrimonial delas e de quase 100% das produções “brasileiras” pertence, na verdade, às plataformas de streming a que estão vinculadas, uma prática que nasce da ausência de regulamentação e que, segundo profissionais do setor, prejudica toda a cadeia produtiva do audiovisual.
“No Brasil há uma clara diferença de poder economico entre profissionais independente e as grandes plataformas de streaming. As produtoras independentes detém o poder da criação, mas para viabilizar a distribuição e a comercialização no ambiente digital, dependem quase que de um único canal, que está sob o poder dessas grandes plataformas”, explica o produtor Leonardo Edde, presidente Sindicato da Indústria Audiovisual (SICAV).
Para que uma produção seja considerada brasileira, o Certificado de Produto Brasileiro (CPB) precisa ser requerido junto à Agência Nacional de Cinema (Ancine), mediante envio de cópia da obra finalizada, por “pessoas físicas e jurídicas registradas na Ancine como agentes econômicos”.
“Qualquer produtor indepentende que for negociar um contrato com essas plataformas vai ser persuadido a ceder 100% dos direitos intelectuais pra elas. Não é usual ter uma sociedade, uma coprodução, onde eu detenha a propriedade intelecual quando o investimento é da plataforma. É uma falha”, argumenta.
No início de setembro, 12 associações e sindicatos, incluindo o SICAV, criaram a Frente da Indústria Brasileira do Audiovisual Independente (FIBRAv) para sensibilizar o Governo Federal, o Congresso Nacional e a sociedade a respeito dessa e outras questões ligadas à regulação do VoD no Brasil. A ideia é fazer avançar os projetos que tratam do tema, como os PLs 483/22 e 8889/17.
Leonardo afirma que uma mudança na lógica atual contribuiria para que o país pudesse se ver mais na tela. “Teríamos mais liberdade de criação. Não existe censura, mas quando você cria para uma empresa, o ponto de vista é sempre daquela empresa, da visão estrangeira. Já a criação da produção independente é a criação do Brasil real, é o ponto de vista do brasileiro para o brasileiro”, pontua.
O produtor destaca que quanto mais as obras se aproximam da realidade do público, maior o potencial de mostrar a sociedade pra ela mesma: “Outro ponto é a garantia da inclusão e da diversidade em temas, formato, gênero e raça, porque a produção independente traz isso, é inerente à pela. Quanto mais diverso, mais potencial de público ele tem”.
Além de mecanismos para garantir uma maior participação na propriedade patrimonial das obras para os produtores brasileiros que as produzem, a frente defende que parte do faturamento das plataformas no país seja revertida em obrigatoriedade de investimento direto na produção de conteúdos brasileiros independentes e de pagamento da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine).
“Precisamos manter recursos aqui dentro, retroalimentar nossa indústria. O valor arrecadado com as obras brasileiras está indo estrangeiro, ficando lá fora. E vamos dizer que daqui a pouco tudo seja streaming, que tenhamos 200 mil filmes brasileiros todos de propriedade de uma empresa estrangeira. Se alguém aperta um botão acabou a cultura brasileira”, avalia.
“É preciso ter um business plan”
Relatório divulgado em agosto pelo Ministério da Cultura (MinC) e intitulado Recomendações Acerca da Regulação do Segmento de Video on Demand reitera esse entendimento. Para a pasta, a cessão da propriedade patrimonial das obras produzidas no país tem impactos econômicos negativos, pois promove a fuga de arrecadação do país e impede o fortalecimento da exportação de produtos culturais brasileiros.
O documento defende que “o marco regulatório do VoD deve assegurar que os direitos patrimoniais sobre a obra brasileira e, sobretudo, a obra brasileira independente, permaneçam majoritariamente com empresas independentes, em consonância com os normativos já consolidados no arcabouço regulatório do audiovisual. Essa premissa assegurará que a produtora, participe dos resultados financeiros (ou monetização) do sucesso de suas obras, e não atuem como meros prestadores de serviço, sem participação no resultado de suas obras.”
Em recente entrevista ao Valor Econômico, Elisabetta Zenatti, vice-presidente de conteúdo da Netflix Brasil, afirmou que a empresa está aberta para outros modelos de negócio e tem se preparado para um cenário de regulação.
“Eu fui produtora. Por muitos anos eu tive produtora, então eu tava do outro lado do balcão. Estamos muito abertos a todos os modelos de negócio. Hoje, por incrível que pareça, e eu sei que não dá para enxergar isso, mas a Netflix licencia mais do que faz originais. Então a gente está muito aberto a todos os modelos, nos originais a gente coloca, vamos dizer assim, toda a energia de todos os times Netflix no produto”, explica a executiva.
Elisabetta Zenatti, vice-presidente de conteúdo da Netflix Brasil
Com licenciamento, Zenatti explica, é diferente.”Para você poder licenciar um título, você tem que ter um ‘business plan’, um modelo de negócio. Você tem que saber: tá bom, ok, se eu vou licenciar esse produto, como é que eu vou financiar ele? Por exemplo, fazer um windowing [quantidade de tempo entre quando um filme chega aos cinemas e quando pode ser disponibilizado em serviços de streaming e outras mídias de vídeo]. Então vou vender uma janela para linear, uma janela para o cabo, vou ter um distribuidor internacional. Enfim, você precisa se organizar para isso”.
Segundo a vice-presidente de conteúdo da Netflix, as produtoras brasileiras ainda estão engatinhando nesse cenário. “No cinema, por existirem as salas de cinema, o modelo das distribuidoras já faz naturalmente isso. O distribuidor de cinema já faz um business plan, onde calcula x de bilheteria, e depois a venda ou a pré-venda para várias janelas de linear e não linear. E aí faz um business planning e decide quanto vai poder investir nessa produção. É um pouco desse mindset que as produtoras precisam ter para o licenciamento”.
O Metrópoles procurou outros serviços de streaming que optaram por não comentar o tema. O espaço segue aberto.