Saiba os limites éticos e legais do uso da imagem de artistas pela IA
Propaganda da Volks com Elis Regina e Maria Rita acendeu debate sobre os limites éticos do uso de imagem. Conar investiga empresa
atualizado
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A Volkswagen entrou em foco após lançar uma propaganda onde revivia Elis Regina, morta em janeiro de 1982, e a colocava para cantar a música Como Nossos Pais ao lado da filha Maria Rita. Já João Gomes se apresentou “ao lado” de Luiz Gonzaga, falecido em agosto de 1989, em uma ação publicitária para a iFood. MC Kevin (1998-2021) e Marília Mendonça (1995- 2021) tiveram suas vozes mescladas na canção Intenção, lançada originalmente pela Rainha da Sofrência e Gaab em 2019.
Os exemplos citados e tantos outros que viajam pela internet foram criados e lançados por meio da inteligência artificial, artifício cada vez mais presente no mercado publicitário, musical, cinematográfico, literário, entre outros.
A propaganda de uma nova Kombi com a imagem de Elis e Maria Rita feita pela Volks, no entanto, abriu um debate sobre o uso da imagem de artistas já falecidos, além de seus direitos autorais e dos limites éticos do uso de seu patrimônio musical para benefício de empresas.
A discussão se intensificou após o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) abrir uma representação ética contra a campanha publicitária de 70 anos da produtora de automóveis, alegando como motivação “queixa de consumidores”.
O advogado Gabriel de Britto Silva, por exemplo, denunciou ao Conar a campanha da empresa alegando desconforto com a propaganda. “Tal fato permite reflexões sobre questões de natureza ética, já que se está diante de pessoa humana falecida e que não pode reivindicar o uso da própria imagem. Não se sabe sequer se viva fosse, a Elis autorizaria a imagem, ainda mais para fabricante de automóveis e para fins estritamente comerciais”, diz um trecho do documento, ao qual o Metrópoles teve acesso.
“Não é porque a IA possibilita trazer pessoas falecidas à ‘vida’ que os vivos devem necessariamente fazê-lo. Recriação de imagem de falecidos em condições absolutamente novas e inéditas é algo que merece atenção, estudo multidisciplinar e fixação de normativas legais”, completa o advogado.
A representação abrange não só a Volkswagen, como a AlmapBBDO, agência publicitária responsável pela propaganda. Em nota enviada ao Metrópoles sobre a investigação do Conar, a empresa disse: “A AlmapBBDO foi notificada pelo CONAR em 10 de julho e apresentará sua resposta no prazo concedido”.
Renascimento por IA
Mesmo que o assunto esteja em alta, o “renascimento” de celebridades por meio de inteligência artificial não é uma novidade. Paul Walker, por exemplo, apareceu em Velozes & Furiosos 7 como Brian O’Conner após sua trágica morte em um grave acidente de carro, em 2013, por meio de computação gráfica.
Quando se fala no uso dessas pessoas para publicidade, também não há grandes novidades: Roberto Bolaños, o Chaves; Marilyn Monroe; Kurt Cobain; Mussum e outros também foram recriados — em imagem e voz — em propagandas publicitárias anos após suas respectivas mortes.
Especialistas na área de uso de imagem apontam as linhas tênues entre a permissão da família para livre abuso do patrimônio de uma celebridade e o desejo da pessoa em questão — fato este que se mantém mesmo após sua morte.
“A regra é que a imagem das pessoas pertence a elas e é algo inalienável, portanto, não pode ser transmitido a outras pessoas. O que se pode fazer é um contrato de cessão de uso dos direitos da imagem e cada um desses contratos pode ter regras e cláusulas específicas conforme desejar o titular da imagem. Assim é possível cobrar um valor em troca da utilização da sua imagem por uma empresa”, defende Marcelo Crespo, coordenador do curso de direito da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
“A grande questão é que quando alguém morre seus direitos de imagem são transmitidos a sua família, seus filhos, seus herdeiros e eles é que farão a gestão dos direitos de uso. Então pode surgir a questão de a família fazer a cessão ainda que o morto não tivesse ideia de que isso um dia pudesse acontecer. E aí que entram as questões éticas”, completa o especialista.
Já Marcus Pessanha, advogado especialista em direito regulatório e sócio do Schuch Advogados, cita a lei nº 9610/98, “cuja finalidade é a proteção de obras literárias, artísticas e científicas, impedindo seu uso indevido por terceiros”:
“É importante destacarmos que na época de promulgação da lei, nem se vislumbrava a possibilidade da emulação da imagem de pessoas falecidas por meio de recursos tecnológicos, o que já indica um descompasso do diploma legal com o contexto atual.”
“Mesmo que se façam as atualizações e adaptações necessárias, tecnologias fortemente disruptivas e inovadoras sempre vão demandar uma releitura e adaptação da regulação jurídica em um espectro mais amplo do que a atualização de dispositivos de lei. Os próprios institutos jurídicos em seus conteúdos precisam ser revistos, o que fica bastante claro com as últimas demonstrações artísticas e de marketing”, entendea.
Testamentos esclarecem uso de imagem
Dando ainda mais gancho para o debate do limite de uso de imagem, artistas internacionais já trabalham para que seus patrimônios não sejam usados em homenagens póstumas. Após passar por uma internação na UTI causada por infecção grave, Madonna atualizou seu testamento e deixou claro sua vontade sobre o uso de hologramas após seu falecimento.
De acordo com o The Sun, a cantora proibiu o uso de hologramas com sua imagem em shows póstumos. “Com exceção do Abba Voyage, o uso de hologramas para dar vida aos artistas tem sido questionável, para dizer o mínimo”, diz uma fonte ao site sobre o motivo para proibição de Madonna.
Whoopi Goldberg fez o mesmo: a artista de 67 anos deixou escrito no documento, feito há 15 anos, a proibição do uso de hologramas com sua imagem.”Eles não perguntam a você, essa é a questão. Apenas fazem isso, e então você diz: ‘Ei, não é o Tupac?’ Eu não quero isso. É um pouco esquisito, assustador”, disse ao talk-show The View.
“A questão da imagem para gerar direitos patrimoniais aos herdeiros é possível. Porque a lei de direitos autorais permite no seu artigo 41 que os direitos patrimoniais do autor perduram por 70 anos a contar de 1º de janeiro do ano subsequente ao seu falecimento, obedecendo sempre à ordem sucessória prevista na legislação civil. Aplica-se a mesma ideia as obras póstumas. Essa questão vai envolver a imagem, porque a imagem reflete, da Madonna, por exemplo, um valor peculiar. É possível e exclusivo esse direito”, explica Leonardo Aquino, professor de Direito do Centro Universitário de Brasília (Ceub).
Pessanha ainda diz: “O ordenamento jurídico atual não dispõe de normas gerais e amplas aptas a lidar, ainda, com essas inovações. Nada mais natural que seus titulares busquem resguardar suas imagens de forma póstuma, bem como os direitos de seus herdeiros.”
Os pontos positivos
Os especialistas também comentaram sobre os pontos positivos e os negativos do uso da imagem pela inteligência artificial.
Marcelo Crespo opina: “Acredito que os pontos negativos sejam eventualmente a não percepção das pessoas de que se trata da utilização de uma ferramenta de inteligência artificial. Os pontos positivos certamente são poder curtir um pouco mais personagens, artistas de quem gostamos e que eventualmente não tenhamos convivido na mesma época.”
Já Marcus Pessanha vai por outro caminho. “A deturpação da verdade e o abuso da informação, na verdade, já prejudica relações de trabalho e de consumo em todo o mundo, o que é bastante negativo para a sociedade. Por outro lado, em termos de avanço na produção, indústria, medicina, deve ser muito intenso nos próximos anos, o que é extremamente positivo, além de ser potencialmente enriquecedor em todas as acepções do termo”, conclui.
O tema, inclusive, repercute em Hollywood: nessa quinta-feira (13/7), atores do sindicato que representa a classe, o SAG-AFTRA, na sigla em inglês, entraram em greve e se uniram a roteiristas para pedirem melhores condições e, entre outros, regulamentação do uso de inteligência artificial.
Os profissionais da classe se preocupam que o uso da IA pelos estúdios pode precarizar os trabalhos e a exploração da imagem de atores. Um exemplo: Invasão Secreta, série da Marvel Studios, teve sua abertura feita inteiramente com ferramentas de inteligência artificial.