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Quadrinho faz releitura de William Blake no Brasil contemporâneo

O Matrimônio de Céu e Inferno mescla versos do poeta com história tarantinesca em São Paulo para criticar corrupção religiosa

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Fred Rubim/Avec/Divulgação
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1 de 1 william-blake-fred-rubim-avec3 - Foto: Fred Rubim/Avec/Divulgação

No fim do século 18, o poeta e pintor inglês William Blake recebeu uma visita nada convencional: um demônio apareceu para ele e transmitiu-lhe pílulas de sabedoria para que ele compusesse uma espécie de Bíblia invertida. Uma de suas mais influentes obras, O Matrimônio de Céu e Inferno, inspira agora um quadrinho homônimo com roteiro de Enéias Tavares e arte de Fred Rubim, publicado pela Avec Editora.

A adaptação de O Matrimônio de Céu e Inferno faz uma releitura da obra de William Blake situada na São Paulo contemporânea, com uma trama assumidamente tarantinesca, acompanhando quatro histórias simultâneas que se cruzam. Amarante é um matador de aluguel que se vê forçado a exterminar uma família; Verônica é uma prostituta reunindo dinheiro para sustentar sua família, que mora em Buenos Aires; Dani é uma pintora que trafica drogas para financiar sua arte; e Santos é o pastor de uma igreja neopentecostal que estende seus tentáculos pelo mundo.

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“Como cada um deles dialoga com uma dimensão presente na obra de Blake: a violência, o desejo e o erotismo, a arte e o visionarismo, e a corrupção religiosa”, analisa Tavares em entrevista ao Estado. “Meu processo criativo sempre parte de estereótipos, para então, a partir desses tropos superficiais, ir encontrando diferentes níveis de complexidade. Fazer Amarante gostar de cinema, Verônica de música, Dani de arte e Santos de Literatura ajudou nisso, além de ter me dado a oportunidade de usar essas predileções para referir aqui ou ali à presença de Blake nessas mídias”, acrescenta o roteirista e escritor, que também é professor da UFRGS e estudou a obra poética e pictórica de Blake em seu doutorado.

De certa forma, cada um dos personagens mescla um caráter imoral com uma característica elevada, fazendo alusão à ideia de união entre céu e inferno, como propõe Blake. “A partir desses temas, a união de contrários foi pensada nos próprios encontros desses anti-heróis, nos seus conflitos, paixões, afetos e desencontros”, diz Tavares, que assume não ter planejado esse contraste logo de início.

A arte econômica de Fred Rubim traz uma linguagem urbana para o mundo transcendente de Blake, e reforça os contrastes dos personagens por meio de uma paleta de cores diferente para cada um deles, que ele vai misturando à medida que as linhas se cruzam. “O que procurei fazer foi trazer a essência da pintura e do desenho de Blake para essa linguagem das HQs em uma atmosfera mais urbana, pegando referência até mesmo do grafite”, conta Rubim, que se orientou por meio de fotos de São Paulo tiradas por Tavares, já que ambos moram em Porto Alegre. “Meu traço é mais enxuto, não tenta ser realista, e acho que isso de certa forma jogou ao meu favor. Pude fazer uma interpretação do significado da obra dele sem cair na tentação de imitar seu estilo.”

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Para possibilitar os encontros entre personalidades tão heterogêneas, somente uma cidade como São Paulo poderia se oferecer como palco para o quadrinho. “Precisávamos de uma cidade brasileira que seria uma Babel moderna, uma megalópole de oportunidade, decepção, violência, imaginação e pluralidade, tanto social quanto cultural”, conta Tavares. A ideia de conciliação de opostos, tão presente na escolha do cenário, pulsa nos temas trabalhados por Blake. “Isso não apenas dialoga como é necessário ao Brasil dividido e conflituoso em que nos encontramos”, afirma o roteirista. “Blake nos aconselha que a solução está na união de opostos, no diálogo dos antagonismos, na proximidade de energias antitéticas.”

Rubim confessa que a vanguarda representada por Blake e sua presença na cultura pop são fatores que tornam mais difícil a adaptação de sua linguagem para a contemporaneidade. “Ele estava à frente do tempo, tanto que até hoje reverbera em outras mídias. Intimida um pouco quando você vai adaptar uma obra dele, que não só pintava como inventou seu próprio método de impressão.”

Produzido por meio de um método gráfico criado pelo próprio Blake, que também era tipógrafo, O Matrimônio de Céu e Inferno contém provérbios ambíguos e intrigantes, como “Da água estagnada espera apenas o veneno”; “A crítica do estúpido não passa de precioso elogio”; ou “Acalentar desejos e não os realizar é como matar um bebê no berço”. O livro mesclava versos, aforismos e gravuras, tudo de autoria dele. Alguns dos poemas e dos mandamentos servem como fio condutor no quadrinho de Tavares e Rubim, que intercala a trama principal em São Paulo com delírios gráficos do suposto encontro de Blake com a entidade.

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O trabalho tipográfico de Blake foi inovador tecnicamente, mas também é considerado um dos precursores da arte sequencial — ou histórias em quadrinhos — pela combinação única de imagens e palavras cujo sentido as tornava indissociáveis entre si em suas gravuras. Sua importância para a área é tamanha que nomes como Robert Crumb, colosso dos quadrinhos underground americanos, e Grant Morrison, atual editor da revista Heavy Metal, já declararam ter sido influenciados diretamente por ele. Alan Moore faz referência a poemas de Blake em V de Vingança e Watchmen, e em Do Inferno (1991-1998) e Angel Passage (2001) o artista é um dos personagens da trama. Sem contar Bill Everett (1917-1973), parceiro de Stan Lee na criação de Namor e Demolidor, que dizia ser descendente direto de William Blake (e chegou a assinar com esse nome por um tempo).

Um dos versos mais conhecidos de Blake foi composto para O Matrimônio de Céu e Inferno: “Se as portas da percepção fossem purificadas, cada coisa se revelaria ao homem como é: infinita.” Esse trecho inspirou o título de um livro de Aldous Huxley, As Portas da Percepção, e o nome da banda americana liderada por Jim Morrison, The Doors.

Curiosamente, se Blake foi um dos pioneiros da autopublicação, hoje seus descendentes artísticos estão lidando com o mesmo problema que ele enfrentou durante a vida — vale lembrar que Blake morreu no anonimato e sua obra só foi resgatada anos mais tarde. “De alguns anos para cá houve um crescimento na produção e no público dos quadrinhos nacionais, mas ainda não é suficiente para criar um mercado tão profissionalizado”, lamenta Rubim. “Esse ano a gente viu que todas as editoras estão com o pé no freio por conta da crise, todo o cenário incerto que a gente vive. Os quadrinistas estão tendo que procurar outros meios de se publicar, como autopublicação e financiamento coletivo, como o próprio Blake, que teve que inventar o próprio método de produção.” A história se repete, afinal.

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