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Os amigos brasileiros de Gabriel García Márquez

Autor de Cem Anos de Solidão visitou o Brasil em 1978, 1990 e 1995. Nestas ocasiões, conheceu Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Brasília

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Gabriel García Márquez
1 de 1 Gabriel García Márquez - Foto: Divulgação

“Me mandaram fazer uma entrevista sobre o marquês”, avisou a estagiária de um jornal do Rio ao escritor mineiro Fernando Sabino. “Que marquês?”, perguntou o autor de Encontro marcado (1988). “Esse que vocês editaram”, explicou a moça, com o gravador ligado. “Que eu saiba não editamos nenhum marquês”, afirmou Sabino. “O autor desse best-seller de vocês, Cem anos de perdão”, esclareceu a jovem. “De solidão”, corrigiu. “Ou isso: de solidão. Ele não é marquês?”, insistiu. “Não. Ele não é marquês. O nome dele é Gabriel García Márquez. Com z no fim”, respondeu, já impaciente. “Então é isso. Foi confusão minha”, admitiu a estagiária. O diálogo acima está na crônica A escrita é outra, incluída na antologia As melhores crônicas de Fernando Sabino (1986).

Em 1969, Cem anos de solidão (1967), a obra-prima de Gabriel García Márquez, foi publicada no Brasil pela Sabiá. A editora com nome de passarinho, fundada em 1966 por Rubem Braga e Fernando Sabino, publicou títulos de outros pesos-pesados da literatura latino-americana como Pablo Neruda, Jorge Luis Borges e Mario Vargas Llosa.

“O próprio Gabriel García Márquez confessou-nos que diariamente, depois do ato de escrever (nunca durante), tinha de sair para tomar alguma coisa, relaxar o espírito desgastado pelo esforço mental. Assim escreveu Cem anos de solidão, além de outras obras-primas – e também ganhou o Prêmio Nobel (sem ser alcoólatra)”, lembrou Sabino em outra crônica, Amigos do copo, do autobiográfico O tabuleiro de damas (1999).

A cobertura de Rubem Braga, na rua Barão da Torre, em Ipanema, Zona Sul do Rio, foi um dos endereços visitados por Gabriel García Márquez em sua primeira visita ao Brasil, em 1978. A primeira de três. Gabo, como era chamado carinhosamente pelos amigos, voltou ao país em 1990 e 1995. No Rio, ficou hospedado, segundo jornais da época, na casa de Chico Buarque e Marieta Severo.

“Já fiz quatro letras para ele colocar a música”, declarou ao jornal Folha de S. Paulo, de 24 de setembro de 1978. Além do Rio (“Cidade de pessoas belas, tanto homens quanto mulheres”), Gabo conheceu Salvador (“Parece com o Caribe”), São Paulo (“Cidade do Século 20”) e Brasília (“A mais estranha. Parece uma cidade fantasma. Não vi ninguém na rua”), entre outras.

Na capital baiana, visitou o artista plástico Carybé, o ilustrador das edições brasileiras de seus livros. Com Jorge Amado, não teve a mesma sorte. O autor de Gabriela – Cravo e canela (1958), Dona Flor e seus dois maridos (1966) e Tieta do agreste (1977), entre outros clássicos da literatura nacional, não estava em casa.

“Leio García Márquez de há longo tempo”, relatou o baiano no livro Navegação de cabotagem (1992), de memórias. “Não sei se fui eu quem recomendou Cem anos de solidão a Glauber Rocha ou se foi Glauber Rocha quem chamou minha atenção para o livro do colombiano.” Coincidência ou não, Glauber Rocha entrevistou García Márquez para a edição nº 82 do jornal O Pasquim, publicado em janeiro/fevereiro de 1971.

Amigos brasileiros

García Márquez e Jorge Amado se conheceram em 1970, na Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha. Na ocasião, os dois estavam acompanhados de suas respectivas esposas, Mercedes Barcha e Zélia Gattai. “Foi um encontro encantador. Éramos todos fãs dele e ambos queriam se conhecer”, recorda Paloma Amado, a filha de Jorge e Zélia, então com 19 anos. “Ficou claro que ele e Mercedes eram como a gente, pessoas simples e sem estrelismos. Nos gostamos imediatamente e creio que foi na Alemanha que selaram a amizade que durou até o fim de suas vidas.” Do Brasil, García Márquez seguiu para a Colômbia, onde reencontrou Jorge Amado.

Ao longo das décadas, Gabriel García Márquez colecionou amigos brasileiros, como o roteirista Doc Comparato e o tradutor Eric Nepomuceno. O primeiro é coautor de Me alugo para sonhar, escrito em parceria com García Márquez. Juntos, os dois ministraram uma oficina de roteiro (taller, no original) para seis alunos da Escola Internacional de Cinema e Televisão (EICTV) de San Antonio de los Baños, em Cuba. Já o segundo é responsável pela tradução de incontáveis obras de García Márquez para o português, como Doze contos peregrinos (1992), Notícia de um sequestro (1996) e Memórias de minhas putas tristes (2004), entre outras. A mais recente delas é o póstumo Em agosto nos vemos (Record), lançado em março deste ano.

Doc conheceu Gabo em 1987. Estava no saguão de um hotel em Moscou à espera de um táxi quando sentiu um cutucão no ombro. “Muito prazer! Vamos trabalhar juntos”, avisou Gabo. “Ué, de onde ele me conhece? “, perguntou a si mesmo o roteirista de minisséries da TV Globo, como Lampião e Maria Bonita (1982), Bandidos da falange (1983) e Padre Cícero (1984).

Meses depois, veio a resposta: Gabo era presidente do júri que concedeu o prêmio Coral Negro à minissérie O tempo e o vento, adaptada por Doc a partir da obra de Érico Veríssimo, no Festival Internacional de Havana, em 1986. “O tempo e o vento foi um dos três livros que estudei para escrever Cem anos de solidão”, confidenciou Gabo. “Veríssimo foi genial ao manejar a saga de uma família através dos tempos.”

“Já emprestei grana para um Nobel de Literatura”

García Márquez voltou ao Brasil em 1990. Veio acertar sua participação no roteiro de O amor e outros demônios, dirigido por Ruy Guerra. Com a extinção da Embrafilme, porém, o projeto nunca saiu do papel. Mesmo assim, o escritor colombiano e o cineasta luso-brasileiro trabalharam juntos em três filmes (Erêndira, de 1983; A bela palomera, de 1987, e O veneno da madrugada, de 2006) e uma minissérie (Me alugo para sonhar, de 1991-1992).

No Rio, García Márquez ficou hospedado no Caesar Park, atual Sofitel, em Ipanema. “Na hora de pagar a conta, o hotel não tinha como fazer o câmbio. Então, paguei eu”, recorda Eric Nepomuceno, amigo de Gabo desde 1978. “Volta e meia, rio dessa história: já emprestei grana para um Nobel de Literatura”, gaba-se.

Quem conseguiu uma exclusiva com García Márquez foi a jornalista Cristina Serra, então repórter de política do Jornal do Brasil. No saguão do Caesar Park, o escritor se recusou a dar entrevista para a TV Globo. No entanto, aceitou conversar com o JB. Dias antes, em 22 de março, o candidato à presidência da Colômbia Bernardo Jaramillo foi assassinado a tiros em Bogotá.

“Achei que seria um bom assunto e comecei por aí”, relata Serra. O que ela não sabia é que García Márquez era amigo de Jaramillo e estava profundamente abalado com sua morte. “Ele me deu uma entrevista fortíssima, refletindo sobre a violência política na Colômbia, tão presente em seus livros. Não falamos de literatura. Não havia clima e procurei respeitar”, recorda a jornalista. No dia seguinte, a entrevista ganhou manchete de página na seção de assuntos internacionais: “A Colômbia em tempos de cólera”.

“Não se comportava como um escritor de sua importância”

A terceira e última visita de García Márquez ao Brasil foi em 1995. O escritor colombiano foi convidado a participar da mostra Cinema Latino-Americano dos Próximos Cem Anos, que aconteceu entre os dias 25 e 30 de abril no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), no Centro do Rio. Por recomendação médica, Gabo não compareceu à cerimônia de abertura. Estava fortemente gripado e ficou de repouso no hotel.

Além da palestra no CCBB, pretendia se encontrar com o antropólogo Darcy Ribeiro e conhecer a Escola de Cinema da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), em Campos. Entre um compromisso e outro, revisou trechos de seu mais recente livro, Notícia de um sequestro (1996), no laptop que trouxe na bagagem de mão.

Em sua terceira passagem pelo Rio, Gabo matou a saudade de outro grande amigo: Luiz Carlos Lacerda, o Bigode. O cineasta foi produtor da Escola Internacional de Cinema e Televisão (EICTV) entre 1992 e 1993 e jurado em um concurso de roteiros inéditos no Festival de Havana, em Cuba, em 1995.

“Numa de suas idas à escola, García Márquez notou que os carros soviéticos Lada, que cada membro da diretoria tinha para uso pessoal, estavam em péssimo estado. Mandou, então, comprar, do próprio bolso, dez carros novos e doou à diretoria. No entanto, não queria que ninguém soubesse disso”, recorda Lacerda. “Gabo era um homem simples, afetuoso e carismático. Sempre vestido de branco, não se comportava como um escritor de sua importância.”

Quando soube por intermédio de um amigo, o cineasta Orlando Senna, que a EICTV abriu inscrições para seu tradicional curso de roteiro, Manuela Dias não pensou duas vezes. Em vez de duas histórias, inscreveu cinco! Selecionada para a turma de 2006, pegou empréstimo no banco para financiar o curso de um mês de duração.

“É de se esperar que um mestre esbanje paciência, mas o Gabo tinha uma impaciência fantástica com histórias que ele achava chata”, conta Dias. “Quando não gostava do plot inicial, cortava o aluno sem piedade: ‘Si, si, pelo qual és lá buena?’. Achei essa urgência impiedosa uma das grandes lições desse mestre inesquecível. Afinal, o público também é assim: não tem condescendência”, avalia a autora da novela Amor de mãe e da série Justiça.

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