Residências artísticas: músicos fazem de suas casas palco de criação
No Lago Norte ou em Ceilândia Norte, artistas que moram em locais compartilhados exploram a criatividade e a vivência
atualizado
Compartilhar notícia
Trocar inspirações, referências e experiências mas também dividir as contas e as atividades práticas para manter o lar em ordem. Essa é a rotina de artistas que optam por morarem juntos no Distrito Federal. Em comum, eles têm a coragem de quem, por vocação e paixão, escolhe viver de música.
O Metrópoles encontrou duas casas coletivas habitadas por músicos, instrumentistas, DJs e rappers da capital federal. Seja no Lago Norte ou em Ceilândia Norte, as residências são lares, e o convívio familiar, embalado pelo melhor da Música Popular Brasileira, ganha ares que lembram o Cantinho do Vovô – sítio em Jacarépaguá (RJ), onde viveram os integrantes dos Novos Baianos, na década de 1970.
Formada em canto lírico pela Escola de Música de Brasília (EMB), Natália Pires, 32 anos, foi a primeira a chegar, dois anos atrás, na casa localizada no Lago Norte. Nascida e criada em Taguatinga (DF), ela compõe a formação de duas bandas que movimentam a noite da cidade: a de rock and roll Nat Mirros e os Espelhos da Noite e o grupo Forró do B.
O segundo músico a chegar à casa foi Gabriel Tomé, 28. Percussionista formado pela Escola Brasileira de Choro Raphael Rabello. O goiano radicado em Brasília, chegou a dar aulas no local e participar de diversos projetos musicais do Clube de Choro. Atualmente é, junto com Natália, um dos integrantes da Forró do B. Além de tocar em outros dois grupos, o Maracutaia e o Choro de Resistência — com este nome por causa da Lei do Silêncio, “que fez com que vários espaços fechassem as portas à música”, opina Gabriel.
Letícia Fialho, 29, está há apenas seis meses morando na residência coletiva. A cantora, compositora e instrumentista passeia por diversas cenas de Brasília. É cavaquinista e violonista do grupo Chinelo de Couro. Toca no bloco de Carnaval Essa Boquinha Eu Já Beijei e na banda Contém Dendê. Além de trabalhar bastante com trilha teatral.
Na madrugada
Estar sob o mesmo teto que pessoas com interesses afins facilita muito o convívio, de acordo com Natália Pires. “Um músico entende de outra forma as necessidades de outro músico”, ressalta a cantora. Um dos principais bônus, segundo ela, são os bate-papos noturnos, as rodas de violão e o apoio mútuo entre eles.
Letícia Fialho concorda: “Lembro de quando ainda estava compondo meu novo EP, a Natália passava pelo quarto com um cafezinho, enquanto eu compunha. Ela me ouvia e acabava acompanhando um pouco do processo”, recorda. “É legal que a gente conhece as histórias das músicas um dos outros e se envolve de uma maneira diferente”, completa Natália.
As trocas de inspirações e ideias também resultam em parcerias no palco. “Estreamos tocando juntos no Carnaval deste ano. Tocamos no Rela Bucho, um bloco carnavalesco embalado por forró, com vários forrozeiros de Brasília. Muitas vezes também fazemos pequenas participações nas bandas um dos outros”, lembra Gabriel, que já chegou a substituir, de última hora, a zambumbeira do Chinelo de Couro em uma apresentação.
Prazer e trabalho
Na casa, eles realizam os ensaios e encontros para cada novo projeto. “As pessoas veem muito a música como hobby, mas é nossa profissão. Os outros moradores daqui, que são de outras áreas, têm essa sensibilidade de entender que os nossos ensaios não são barulho”, conta Natália.
Segundo uma das vocalistas do Forró do B, até os vizinhos estão se adaptando à rotina musical deles. “Nós já tivemos problemas com alguns, mas é um trabalho de sensibilização. Aqui moram três músicos”, pontua Natália.
Família
Para Gabriel Tomé, que deixou o Goiás, a convivência vai muito além da questão financeira. “Eu que saí de casa faz 12 anos e sempre morei em coletivo, aprendi a criar laços muito além da divisão. Somos uma família. A gente tem os gostos parecidos, não só musical. Para morar em comunidade, a pessoa tem de estar aberta a várias coisas”, acredita o jovem. “Por exemplo, aqui não tem nenhum ‘bolsominion’”, brinca Letícia.
O repertório presente no toca-discos da casa também é tão variado quanto o de qualquer almoço familiar de domingo. “Ouvimos de tudo, principalmente os artistas da cidade como Ellen Oléria, Pedro Martins, o pessoal do Alvenaria, do Joe Silhueta e os Filhos de Dona Maria”, resume Natália, que é logo interrompida por uma revelação. “Cantamos muito Marília Mendonça também”, diz Letícia. “Eu mesmo só conheço as versões sertanejas na voz da Letícia”, entrega Gabriel.
Casa de beats, rimas e métricas
A convivência entre os rappers de Ceilândia Norte vem de longa data. Em 2018, quando o Metrópoles conheceu o grupo Puro Suco, os jovens já dividiam um apartamento na Quadra 708 da Asa Norte – local à época intitulado por eles como Residência Artística Nova Iris. “Vocês ainda vão ouvir os ecos da Nova Iris”, previam PG 400, PRS e Murica. Foram as dificuldades financeiras que fizeram os músicos migrarem para uma casa em Ceilândia Norte, há apenas três meses.
Nascido em Brazlândia, Murillo Felipe, o “Murica” do grupo Puro Suco, vive pela primeira vez a experiência de total independência. “Na Nova Íris, o tio Haroldo, pai de dois dos músicos que moravam lá, arcava com as despesas do apartamento. Hoje, meu sustento vem exclusivamente dos shows. Então, são muitas responsabilidades novas, ter de pagar aluguel, luz…”, enumera. De acordo com ele, voltar para a periferia tem trazido outras inspirações e perspectivas na hora de compor. “Em algumas músicas recentes, por exemplo, falo do tráfico de drogas, que é bem forte aqui na região”, avalia.
Gustavo Peres, o PRS, como prefere ser chamado, também deixou a casa dos pais em Luziânia (GO) e foi morar com o parceiro de palco do Puro Suco, Murica. “Aqui minha produção musical triplicou e o principal motivo foi termos conseguido montar esse estúdio. A inspiração vem e já gravamos na hora”, salienta.
Inspirações compartilhadas
PG 400, 25, conta que todas as canções do seu novo álbum solo Errare Ummano Est vieram de inspirações compartilhadas com os amigos. “Eu tinha uma ideia na cabeça, conversei com Ruan e PRS e, de repente, tinha entendido todo o conceito do disco”, relembra.
Ruan AFP, 20, compartilha o gosto pelo rap com Murica desde a adolescência. “Montamos juntos o nosso primeiro grupo, o Transmissão”. De lá para cá, a troca de “figurinhas” entre os dois nunca parou. “Vários dos meus singles hoje tem um pouco do olhar dele e, claro, os hits dele também tem o meu”, afirma.
Mestres nos jogos de palavras, os rappers só perdem a fala quando questionados sobre a organização da casa. Entreolhares, os moradores desviam da responsabilidade com a louça que transborda na pia. “É porque a gente se preocupa mais com o conteúdo que transborda das mentes”, despista Murica.