Racismo, corrupção e tirania inspiram nova safra de músicas de protesto
Assim como em outros momentos emblemáticos da história, músicos têm apostado em letras carregadas de críticas para denunciar mazelas sociais
atualizado
Compartilhar notícia
Para além de entreter, emocionar e ser a gênese de uma série de expressões culturais, a música sempre dialogou com a reivindicação. Basta pensar nos trechos de Apesar de Você, de Chico Buarque, para compreender a importância de algumas composições em contextos políticos de autoritarismo e retirada de direitos. Ao registrar a violência da censura nos versos da canção, o artista ajudou gerações a compreenderem o que foi a ditadura militar e criou uma trilha sonora de esperança, que permanece atual 50 anos após seu lançamento.
Chico não foi o primeiro nem o último a lançar mão do dom de compor e tocar para denunciar mazelas políticas. Sobretudo nos últimos anos, uma nova safra de músicas de protesto surgiram, trazendo letras que expressam o caos do cenário político, as barbáries do racismo e até mesmo a negligência de líderes mundiais em relação à pandemia de Covid-19. De This Is America de Donald Glover, em 2018, a Micheque do Detonautas, de 2020.
Esta última integra uma série de canções com a temática política e satiriza os supostos depósitos de Fabrício Queiroz na conta de Michelle Bolsonaro. O hit, chegou, inclusive, a motivar uma queixa por parte da primeira-dama à polícia.
“A gente não recebeu nenhum processo formal, pode ser que aconteça mais adiante. Mas estamos resguardados, sabemos que não cometemos nenhum crime, tomamos esse cuidado, inclusive. Se porventura esse processo vier no futuro e a justiça for imparcial, não teremos nenhum tipo de problema”, disse Tico Santa Cruz, líder da banda.
Protestando em nome do rock nacional
Tico conta que a política sempre faz parte do repertório de canções da banda, mas que, geralmente, elas não ficavam em evidência. A sequência de escândalos de corrupção e até mesmo a agressividade dispensada pelo presidente Jair Bolsonaro à imprensa acabaram revertendo o cenário. Prova disso foi o sucesso de Micheque nas plataformas digitais, após a tentativa de censura.
“O flerte com a censura nunca é bom para quem tá tentando censurar. Tanto que o efeito foi outro, acabou gerando uma curiosidade sobre a obra”, ressalta Tico.
A série de singles apresentados ao público este ano ainda incluem Carta ao Futuro, Mala Cheia e Kit Gay. A previsão é que lançar mais três músicas até janeiro de 2020.
“É papel do cidadão se posicionar. E acho que a cultura, por ser uma ferramenta que mexe com o imaginário das pessoas, tem um poder muito forte. Esse é um governo que desde o começo se posicionou para destruir a cultura. É um inimigo. Isso acabou gerando uma mobilização por parte desse setor”
Tico Santa Cruz, Detonautas
Apelo antirracista
Quem também lançou uma melodia com uma importante crítica social foi o Planta & Raiz. Na última sexta-feira (20/11), Dia da Consciência Negra, marcado por protestos pelo assassinato de um homem negro em uma unidade do Carrefour de Porto Alegre, a banda brasileira de reggae estreou Hey, Racista. “A música é um desabafo, um grito de revolta e um convite à reflexão e à construção de um mundo novo”, declara o vocalista Zeider Pires.
“Senti a necessidade de dar esse grito diante de tantos acontecimentos estarrecedores, tristes e inaceitáveis pelo qual o mundo passa. Ainda mais em um momento como esse, em que as pessoas deveriam estar estendendo as mãos umas às outras e não o contrário. Esse é o momento de construirmos um mundo novo sem toda essa maldade que nos cerca”
Zeider Pires, Planta&Raiz
Para Zeider, mais que alegria, a música, em seu sentido amplo, carrega o potencial de ser trilha sonora de mudanças reais. “Ajuda as pessoas a enxergar algumas coisas que estão acontecendo e que precisam ser transformadas, ela questiona e da voz para quem precisa ser ouvido. Eu gosto de falar de amor por exemplo, pois sei que o amor pode transformar”, destaca o artista.
Diálogo entre passado, presente e futuro
Pesquisadora da USP e pós-doutora em Análise do Discurso e Música pela Universidade Paris Nanterre, Josely Teixeira Carlos explica que o rótulo “música de protesto” pode ser aplicado a toda canção que nasce como um contradiscurso e se opõe a toda e qualquer forma de autoritarismo, intolerância e retirada de direitos.
“É um movimento que surgiu em reação discriminação racial, a guerras e à corrida armamentista, como foi o caso de Blowin’ in The Wind, de Bob Dylan, e Revolution, de Lennon e McCartney. O mesmo se deu na Europa e em várias partes do globo. Na França, por exemplo, temos as canções de protesto de Serge Gainsbourg. No Chile, destaca-se a obra de Víctor Jara”, exemplifica.
Em sua opinião, apesar das canções expressarem características próprias da época, lugar ou evento que lhe deram origem, é comum identificar elementos comuns entre elas.
“Se há diferenças de contexto, também há diferenças nos textos das canções. Por outro lado, o mundo autoritário representado e combatido nas canções de Belchior, Chico Buarque e Legião Urbana se reatualiza, com outras caras e outras cores. Porque esses artistas, ao mesmo tempo em que materializaram o passado e o presente em que viveram, também anteciparam o futuro, que hoje se faz presente”, destaca.
“Por isso, não é por acaso que o Emicida de hoje dialogue com o Belchior de 1974 e a Elza Soares de hoje retome o discurso feito por Gonzaguinha em 1973, em Comportamento Geral”
Josely Teixeira, especialista em Análise do Discurso e Música
A especialista acredita esse papel de registro e transformação social tenha sido absorvido pela música ao longo da história por “um mesmo movimento, [de] expor as chagas abertas deixadas pela opressão e suavizar a dor dos oprimidos”.
“É uma ideia que podemos comprovar nos versos de Belchior, quando ele afirma ‘longe o profeta do terror, que a laranja mecânica anuncia, amar e mudar as coisas, me interessa mais’”, conclui.