“O ódio virou linguagem”, diz Emicida no lançamento de AmarElo
Novo álbum contraria expectativas e rapper fará show raríssimo no Theatro Municipal de São Paulo
atualizado
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O aguardado novo disco de Emicida – o terceiro de uma trilogia que consolida uma das investidas artísticas mais consistentes da década – chegou na quarta-feira, 30, às plataformas de streaming. AmarElo contraria expectativas (preconceituosas, ou não) de que Emicida – ou um rapper da sua estatura – chegaria cuspindo rimas raivosas contra o establishment (como ele sabe fazer), e, ao contrário, oferece um abraço. É o que o próprio diz, em entrevista, mas é também o que as músicas, com melodias, rimas, flows, diversas participações e pegando emprestado elementos de diversos gêneros musicais, sugerem.
Numa demonstração da importância que o músico construiu, o show de lançamento do disco, duas sessões no dia 27 de novembro, será um raríssimo show de rap no palco do Theatro Municipal de São Paulo (ingressos de R$ 10 a R$ 50, a partir de 8 de novembro).
“Eu cresci numa cultura de colaboração”, explica Leandro Roque de Oliveira, de 34 anos, o Emicida, na sede da sua empresa, a Laboratório Fantasma, zona norte de São Paulo. “Muita gente colocou um tijolinho nessa construção, e por falta de sensibilidade e por um lance feio da nossa história de não ressaltar quem construiu as coisas nesse País, essas pessoas acabam desaparecendo” – ele cita Dina Di e Sabotage, dois artistas mortos precocemente. “A minha ambição maior é essa. Ajudamos a abrir caminhos. Não só para o rap, mas para o imaginário do jovem brasileiro no século 21” – as participações na São Paulo Fashion Week são exemplos.
“Mas a coisa mais louca é que a gente foi numa visita técnica no Municipal, e eu comentei com uma amiga: ‘po, imaginei que o Municipal fosse maior’. Mas o Municipal é do mesmo tamanho, quem cresceu foi ‘nóis’’, diz, usando uma palavra, assim, com “i”, que acabou virando um de seus mantras.
Ele lembra de um encontro de criação do Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU), em 1978, nas escadarias do Municipal. “Eu vi um vídeo, acho que o Miltão (do MNU) falava: ‘nosso sonho era ver o negro como protagonista na realidade brasileira’. 40 anos depois, a gente alugou o Municipal. E a gente achou que ele nem era tão grande assim (risos)”, diz o rapper.
A questão é que o clima de AmarElo, o disco, é uma declaração de afetividade. Em Cananeia, Iguape, Ilha Comprida, Emicida surge falando com sua filha mais nova, Teresa: “Sem risadinha, porque aqui é o rap, onde o povo é brabo, o povo é mal!”. Mas numa subversão característica de obras revolucionárias, canta em seguida: “Do fundo do meu coração / Do mais profundo canto em meu interior / Pro mundo em decomposição / Escrevo como quem manda cartas de amor”.
“Se pegar a conjuntura atual, é corajoso (ir por esse caminho afetuoso)”, reconhece o cantor. “Não só o ambiente político, mas o ambiente social. As redes sociais nos impulsionam para quê? Tretar. Não dar atenção para as coisas. A gente gosta de arte mas tem se relacionado com a arte de maneira completamente desrespeitosa. Sai o disco novo de um artista, escuta uma vez e não escuta nunca mais. Parece colecionador de coisas que não prestam. E aí o ódio vira uma linguagem, e essa linguagem nos sequestrou. No contexto, sugerir um abraço pode ser uma estratégia suicida. Porém, mesmo que seja, é a estratégia suicida mais bonita de todas.”
Os nomes que fazem a lista de participações de AmarElo é, também, colorida: Fernanda Montenegro (declamando o poema Ismália, na faixa de mesmo nome, uma reinterpretação ousada de um poema canônico), Zeca Pagodinho (cantando sobre amizade numa faixa em homenagem a Wilson das Neves), Marcos Valle (adicionando um piano mais do que brasileiro à faixa Pequenas alegrias da vida adulta, que poderia ser um resumo do disco), Fabiana Cozza, Larissa Luz, e as já conhecidas dos singles lançados anteriormente: Pabllo Vittar, Dona Onete, Ibeyi. E a lista não acaba aí.
Emicida comanda um trem (tendo como maquinista o produtor Nave, seu parceiro há 10 anos) em que os trilhos são o rap, mas os vagões carregam sua estética particular, criada meticulosamente na última década e meia, com as janelas abertas e dispostas a ventilar outros ritmos brasileiros e africanos. Com AmarElo, é possível que essa locomotiva tenha feito a sua afirmação mais desenvolvida até aqui.