Na Netflix, Springsteen on Broadway é show biográfico e emotivo
Especial adapta turnê do músico e revela alegrias, tristezas e fragilidades do “The Boss”
atualizado
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Em Springsteen on Broadway, especial da Netflix, a música do “The Boss” é meio que coadjuvante. Entre um hit e outro – são 15 faixas no setlist –, o roqueiro explora passagens de sua história artística, pessoal e sentimental. Várias delas são relatadas no livro autobiográfico Born to Run (2016). Outras foram guardadas para a turnê que batiza o filme.
Entre pausas e recomeços – a demanda por ingressos foi gigantesca –, a residência de Bruce Springsteen a bordo da tour durou mais de um ano, do fim de 2017 aos últimos dias de 2018, no Walter Kerr Theatre, em Nova York. Com 2h30 de duração, o título da plataforma de streaming condensa duas apresentações para convidados gravadas em julho do ano passado.
Mesmo para quem não é familiar à extensa e rica obra do norte-americano, Springsteen on Broadway pode representar uma experiência reveladora. Surge no palco minimalista, sutilmente iluminado, desde os primeiros minutos, um artista desnudo, acompanhado apenas por um violão e, ocasionalmente, um piano.
As únicas exceções são nas canções Tougher Than the Rest e Brilliant Disguise, nas quais toca ao lado de Patti Scialfa, integrante da E Street Band e sua esposa desde 1991.
“Tive uma vida relativamente fácil”, ele admite. “Nunca tive um trabalho de verdade. Nunca vi uma fábrica por dentro e escrevi sobre isso. Inventei tudo. Sou bom assim”, brinca.
Na verdade, trata-se de um relato intimista, ora bem-humorado, ora pensativo, de um homem disposto a externar alegrias, tristezas e, sobretudo, fragilidades. Cada canção chega aos ouvidos do público agasalhada por ruminações profundas e bem estruturadas – Springsteen roteirizou a turnê e o filme.
Growin’ Up, faixa de seu álbum de estreia, Greetings from Asbury Park, N.J. (1973), abre os trabalhos com lembranças de seu despertar musical na infância. A mãe alugou para ele um violão, já que a família não tinha condições de bancar um instrumento próprio. No dia da devolução, improvisou um pequeno show para as crianças da vizinhança. “Fiz de tudo com ele, menos tocar”, rememora.
Springsteen nasceu no interior de New Jersey – ou “Jerseyquistão”, parodia o cantor. Apesar da proximidade com Nova York, era um município americano como outro qualquer, baseado em Deus e família. Ele compôs, entre seus maiores sucessos, Born to Run (“Nascido para Fugir”). “Mas hoje moro a dez minutos da cidade natal”, diverte-se.
Esse misto de one-man show (“show de um homem só”) e registro musical ganha contornos de sessão de terapia coletiva cada vez que o Boss narra memórias envolvendo seu pai, “meu herói e meu maior inimigo”. Um operário esforçado cuja segunda casa era o bar. A mãe, hoje nonagenária, mantinha a casa de pé e garantia o sustento, sempre com um sorriso no rosto. “Até hoje quer dançar”, reforça.
Entre as várias lembranças paternas, uma veio em sonho, logo após a morte do progenitor. Os dois veem um show para milhares de pessoas. Springsteen diz: “Veja, pai, aquele cara no palco. É como eu te vejo”.
O passeio pelo repertório do roqueiro, um dos grandes cronistas do americano comum e da vida mundana, inclui faixas de diferentes épocas. The Promised Land, do fim dos anos 1970, flagra o artista na vida adulta, cruzando o país e se perguntando: “Quem morreu em meu lugar no Vietnã?”. Born in the U.S.A., um de seus maiores hits, ganha trechinho a cappella.
O Boss encerra o espetáculo com um desejo – “que meu pai estivesse aqui para ver isso” – e um Pai Nosso. Um dos mais politizados artistas de todos os tempos em um show despido de extravagância e farto e de honestidade sentimental.