Jukebox Sentimental: uma ode a Nina Simone, grande sacerdotisa do soul
Se fosse viva, a artista teria completado 85 anos no último dia 21 de fevereiro
atualizado
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Se viva fosse, Nina Simone teria completado 85 anos no último dia 21 de fevereiro. Uma das mais versáteis pianistas de jazz de todos os tempos, a artista ainda é um nome influente dentro do gênero. E não só por isso. Simone, que nos deixou há 14 anos, também foi voz política incisiva na luta pelos direitos civis no auge do movimento nos anos 1960, em sua fase mais pop. Uma audácia que quase lhe custou a carreira, mas nunca a dignidade.
“Não tem como ser artista e não refletir sobre sua época”, desabafou, no ápice dos conflitos entre brancos e negros nos Estados Unidos. “Para mim, a sociedade norte-americana é um câncer que deve ser denunciado antes de ser curado”, refletiu, cheia de revolta, ao abandonar o país e ir viver na Libéria, na África.
Um dos discos emblemáticos desse período é o sensacional e sóbrio Nuff Said que, gravado no ano de 1968, paradoxalmente marcou seu distanciamento do jazz, do gospel e do blues tradicional, ampliando o leque de públicos, à época mais jovens e raivosos. É nele, por exemplo, que está registrado o grito de protesto Backlash Blues, escrito a quatro mãos com o poeta e ativista Langston Hughes (1902–1967). Os versos iniciais são contundentes.
Escrita por Gene Taylor, baixista da cantora, logo após receber a notícia do assassinato de Martin Luther King Jr., a emocionante Why (The King Of Love Is Dead) foi apresentada três dias após o crime, na Feira de Música de Westbury, num cinzento 7 de abril de 1968. “Queremos tocar uma música composta para hoje, para esta hora, para dr. Martin Luther King. Tivemos apenas ontem para aprender, então vamos ver”, avisou, visivelmente abalada.
A música Ain’t Got No; I Got Life, um contagiante medley de duas canções do musical Hair – sucesso na Europa –, endossou ainda mais o tom de protesto contra o apartheid social na América, com letra sarcástica e divertida que explora os opostos numa sociedade dividida pelo consumo e busca espiritual, em plena onda hippie.
“Não tenho água/Não tenho amor/Não tenho ar/Não tenho Deus/Não tenho vinho/Não tenho dinheiro/Não tenho fé/Não tenho Deus/Não tenho amor/Então o que eu tenho?/Por que estou viva de qualquer maneira?/Sim, inferno/O que eu tenho/Ninguém pode tomar”, embala.
Pianista clássica frustrada
Nascida Eunice Kathleen Waymon, em fevereiro de 1933, em Tryon, Carolina do Norte (EUA), Nina Simone começou a tocar piano na igreja com três ou quatro anos de idade, ela nunca sabia ao certo. Deixava-se levar tanto pela música, que chegava a sair de si.
Aos 7 anos, apresentou-se num recital no teatro local de sua cidade, quando era observada na plateia, com atenção, por duas senhoras brancas. Uma delas era a patroa de sua mãe, e a outra, uma professora de piano, a sra. Mazzanovich. Esta última não apenas se comprometeu a dedicar cinco anos de sua vida ensinando a jovem pupila, como criaria, no futuro, um fundo que garantisse sua ida para uma faculdade de música.
“Ela me ensinou Bach e botou na cabeça que eu seria uma das maiores concertistas de piano do mundo”, contou a artista em uma das várias entrevistas disponíveis no ótimo documentário What Happened, Miss Simone?, disponível na Netflix.
Sem dinheiro e lutando para sobreviver, Nina passou a tocar em bares de quinta categoria em Atlantic City até notar que, se também cantasse, o ordenado seria maior. “Assim, US$ 90 era mais dinheiro do que eu ouvira falar na vida. Desde então tenho cantado”, contou. Nessa época, para driblar a mãe, criou o nome artístico que a eternizaria: Nina, por causa do apelido Niña, dado por um namorado, e Simone, em homenagem à atriz francesa Simone Signoret.
Gravado em 1957, seu primeiro álbum, Little Girl Blue, contou com um dos maiores sucessos da carreira da artista, a contagiante My Baby Just Cares For Me. Em 1960, imponente, esbelta e linda, sentada em um banco com um pandeiro numa das mãos, Nina causou furor no prestigiado Festival de Newport. O estrelato viria logo depois, ao se apresentar no Carnegie Hall, em 1963, num show bancado do próprio bolso.
Original e de grande sensibilidade, tinha a habilidade quase mediúnica de pegar um número musical e metamorfoseá-lo numa experiência tocante. Basta conferir, por exemplo, sua performance da canção Who Knows Where The Times Goes, da cantora folk inglesa Sandy Denny, registrada no álbum Black Gold (1969). Nada era mais mágico do que ver seus dedos correr pelas teclas do piano.
“Às vezes eu soava como cascalho e, outras vezes, como café com creme”, avaliou certa vez a artista, atormentada por personalidade bipolar e que teve uma vida de cão nas mãos do marido que a espancava.
Tocou no Brasil em três ocasiões: em 1988, no extinto Free Jazz Festival; em 1997, no Bourbon Street, para um público de 35 mil pessoas no Parque Ibirapuera; e uma terceira vez, em turnê pelo Rio de Janeiro e São Paulo, em 2000.
Para que ninguém tivesse dúvida da lenda que era, certa vez, Nina deu uma resposta debochada, mas com a habitual elegância que tinha, a um jornalista brasileiro. Questionada se sabia quem era Diana Krall, também cantora e pianista de jazz então no começo da carreira, Nina se limitou a dizer: “Não tenho a menor ideia de quem você está falando. Eu sou Nina Simone. Ela, quem é?”