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Jukebox Sentimental: Racionais MC’s escreveram seu próprio evangelho

Marco do gênero no Brasil, disco clássico do grupo de rap mais importante do país ganha livro com escopo acadêmico

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O início dos anos 1990 foi marcado pela barbárie nas grandes metrópoles do país. Em outubro de 1992, uma intervenção da PM de São Paulo culminou no extermínio de 111 detentos no episódio conhecido como o massacre do Carandiru. Em julho de 1993, PMs armados dispararam contra crianças e adolescentes de rua, matando oito, na chacina da Candelária. Um mês depois, policiais encapuzados assassinaram, friamente, 21 pessoas no Vigário Geral.

Foi nesse contexto de impunidade geral e abuso total de poder das autoridades no Brasil que surgia, em 1997, um dos marcos fundamentais do rap brasileiro. Lançado há 21 anos pelos Racionais MC’s, Sobrevivendo no Inferno, com sua ruidosa e pertinente crítica social da realidade brasileira focada nos dramas das tramas urbanas vividas pelos “manos” da periferia, ganha livro lançado pela editora Companhia das Letras.

 

A ideia do projeto surgiu depois que a Unicamp incluiu o disco na lista de leituras obrigatórias de poesias para 2019, junto com cânones do gênero, como o português Luís de Camões e a carioca Ana Cristina Cesar. A empreitada é louvável, mas seria mais instigante se, além das elucubrações academicistas – importante para a legitimação da obra numa esfera respeitada –, trouxesse também histórias por trás das canções a partir de depoimentos dos próprios artistas.

De qualquer maneira, a reprodução das letras das 12 faixas com ares, assim, de poesia urbana apocalíptica, junto com análise lúcida de Acauam Silvério de Oliveira – professor de literatura brasileira na Universidade de Pernambuco que estudou o grupo em doutorado na USP –, dão conta, não por completo, da complexidade sensorial, maturidade criativa e importância social do álbum independente que vendeu 1,5 milhão de cópias. Um fenômeno.

O sucesso, mais do que isso, o reconhecimento do grupo além das muralhas do preconceito e descaso com aqueles que vivem nos “cantos de São Paulo” promoveu não apenas o resgate de uma juventude prisioneira dos guetos sociais de uma grande cidade mas também todo um conceito de orgulho e autoestima. “O dinheiro tira um homem da miséria/ Mas não pode arrancar de dentro dele a favela”, cantam o quarteto em Negro Drama.

“O termo ‘periferia’ passaria a designar não apenas ‘pobreza e violência’ – como até então ocorria no discurso oficial e acadêmico – mas também ‘cultura e potência’”, destacou o sociólogo Tiaraju D’Andrea, citado na tese defendida por Acauam Silvério de Oliveira.

Culto urbano caótico
Considerado por especialistas a banda de rap mais relevante do cenário nacional, os Racionais MC’s nasceram da sinergia entre quatro jovens do extremo sul de São Paulo e da Zona Norte do estado que se encontravam, no início dos anos 1980, perto da estação de metrô São Bento e da casa noturna, Clube do Rap, ambos localizados na região central da cidade. O nome foi inspirado no disco Racional (1975), de Tim Maia.

Além da paixão pela música, os amigos Paulo Eduardo (Ice Blue), Pedro Paulo (Mano Brown), Edivaldo Pereira (Edi Rock) e Kleber Lelis (Kl Jay) tinham em comum as inquietações sobre a violência urbana, potencializada pelo crime organizado e pela brutalidade institucionalizada da polícia. A vida dos jovens da periferia, cercada por sangue, drogas, racismo e miséria, engrossava o caldo temático que embalava letras de protestos contundentes e reflexivas.

“O rap é político”, defendeu Edi Rock em entrevista recente à imprensa paulista. “O rap briga pelos diretos humanos, pelo direito de ir e vir, pelo direito de ser livre…”, exaltou o artista.

Os primeiros registros do grupo surgiram em 1988, com a gravação das faixas Pânico na Zona Sul e Tempos Difíceis que, além de incluídas na coletânea Consciência Black, da Zimbabwe Records, fizeram parte do primeiro disco dos Racionais MC’s, Holocausto Urbano (1990). Foi com o repertório desse trabalho pioneiro que a banda abriu, em 1991, no Ginásio do Ibirapuera, o show para o Public Enemy.

O álbum seguinte, Escolha o Seu Caminho (1992), trazia ainda um discurso autoritário e visão egocêntrica da banda em relação aos dramas sociais vivido pela periferia, algo que mudaria radicalmente no terceiro disco, Raio X do Brasil (1993), quando um mosaico de vozes e olhares diferentes, juntamente com uma série de intervenções do cotidiano, completava a narrativa urgente dos rappers paulistas.

Estratégica que seria mantida com sucesso na obra-prima do grupo, o conceitual Sobrevivendo no Inferno. Com estética visual que lembra uma Bíblia Sagrada e estrutura narrativa desenvolvida como se fosse um culto urbano caótico, o disco expõe, a partir de textos incisivos, os clamores, anseios, desesperos e angústias daqueles que estão do outro lado do sistema. O diabo tem cara e ela não é nada agradável.

O álbum abre com uma homenagem a Jorge Ben na regravação de Jorge da Capadócia embalada por KL Jay, seguida de introdução desanimadora assinada por Mano Brown.

“Deus fez o mar, as árvore, as criança, o amor/ O homem me deu a favela, o crack, a trairagem/ As arma, as bebida, as puta/ Eu? Eu tenho uma Bíblia velha, uma pistola automática/ Um sentimento de revolta/ E tô tentando sobreviver no inferno”, avisa o cantor.

Com samples de clássicos do funk e do jazz, Capítulo 4, Versículo 3 narra num discurso duplo os preconceitos e agruras em torno de uma vítima do vício em crack. Batimentos cardíacos e sample da faixa Poor Abbey Walsh, de Marvin Gaye, norteia uma trama sobre traição em Tô Ouvindo Alguém Me Chamar. Escrita por Edi Rock, a irônica Mágico de Oz é um lamento de fuga e desespero de alguém que se entrega às drogas para esquecer os problemas.

“Se eu fosse mágico? Não existia droga, nem fome e nem polícia. (…)/ Queria que Deus ouvisse a minha voz/ E transformasse aqui no mundo mágico de Oz”, troça.

É na faixa mais festejada do disco, Diário de Um Detento, que o lema de terceirizar a realidade vivida pelos menos favorecidos ganha contorno imponente e preciso. Como o título entrega, revela os bastidores do massacre do Carandiru a partir das memórias e anotações em cadernos do ex-detento, Jocenir, coautor da canção. Vencedor de dois prêmios no Video Music Brasil 1998, o clipe da canção, norteado por poesia épica visceral, impacta.

Tão impactante e duro quanto o lado de uma realidade que há décadas o governo trata com descaso e a sociedade ignora, mas que os Racionais MC’s não deixam morrer.

Reprodução
Racionais MC’s. Cia das Letras, 144 páginas, R$ 34,90.

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