Jukebox Sentimental: livro detalha surgimento da música em Brasília
“Do Peixe Vivo à Geração Coca-Cola”, de Fátima Bueno, registra histórias saborosas do rock e do choro na capital
atualizado
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Pouca gente sabe, mas Raimundo Fagner, uma das estrelas na nossa MPB, foi estudante de arquitetura na UnB, no início dos anos 70, esbarrando, talvez, sem que ele se desse conta, com o futuro cineasta, Karim Ainouz, também estudante do curso em Brasília na época.
Em 1971, o artista cearense seria um dos destaques do I Festival de Música Jovem do CAC-CEUB, defendendo três canções, uma delas o clássico do nosso cancioneiro escrito em parceria com o ícone Belchior, “Mucuripe”, gravada, inclusive, pelo rei Roberto Carlos em 1975. O episódio é contado pela escritora Fátima Bueno no livro “Do Peixe Vivo à Geração Coca-Cola – Música em Brasília (1960 – 1980)”.
“O livro é um mosaico, mostra a diversidade de gêneros e iniciativas culturais em Brasília. Aprendi muito sobre esse tema na pesquisa”, conta autora.
Além de se debruçar em vários livros e recortes de jornais, o título é norteado por entrevistas preciosas que ajudam contar, em detalhes, a formação da cena musical na nova capital do país desde os primórdios até a consolidação do rock e do choro na cidade. Um dos entrevistados, por exemplo, é o mentor do mítico “Concerto Cabeças”, encontro cultural realizado ao ar livre na cidade sob o comando do carioca Néio Lúcio.
“Cheguei em Brasília ainda criança, em 1960. Acompanhei as fases de fanfarras e corais no ginásio, os conjuntos iê-iê-iê, os festivais, o surgimento do rock. É o período da consolidação das instituições que se dedicaram ao ensino e à propagação da música na cidade”, comenta a autora.
Maestros Levino de Alcântara e Cláudio Santoro
Uma das saborosas histórias contadas em “Do Peixe Vivo à Geração Coca-Cola” é o famoso episódio da criação daquela que é reconhecida, oficialmente, como a primeira canção brasiliense, a clássica “Água de Beber”, escrita por Vinícius de Moraes e Tom Jobim em meados dos 50, em plena construção de Brasília, no Catetinho, o mítico Palácio de Tábuas.
Tudo começou quando o vigia do lugar, na maior sinceridade telúrica, deu detalhe importante sobre o abundante olho d’água que brotava no fundo da primeira construção de Brasília. “É água de beber.”
A mise en scène da inauguração de Brasília, com apresentação de orquestra e sinfonia-coral, também é detalhada no livro, assim como as farras musicais dos amigos do presidente JK, no Catetinho, com a presença charmosa do violinista Dilermando Reis. Também a febre do iê, iê, iê, nos anos 60, e o surgimento, na década seguinte, da criatividade coletiva que marcaria a vida cultural da cidade em plena ditadura militar.
“Diferenças de valorização do ensino de artes entre instituições de ensino particulares e públicas não inibiram iniciativas de professores, alunos e público que promoveram notável calendário musical”, escreve a autora, no subtítulo “eclética urbe”.
Ao longo de quase 300 páginas do livro, duas figuras da seara musical candanga se sobressaem a ponto de ganhar um capítulo cada uma. São os maestros Levino de Alcântara e Cláudio Santoro. Pernambucano de Recife, Levino de Almeida, que chegou a ser assistente por três anos do grande músico Villa-Lobos, desembarcou definitivamente em Brasília no início dos anos 60, sendo criador do Madrigal de Taguatinga e da Escola de Música de Brasília.
“Sempre que teve oportunidade, Levino reiterou a importância de ensinar música às crianças para aumentar suas expectativas de inserção social”, narra a autora.
Ícone da música clássica em Brasília, Cláudio Santoro tem sua rica relação com Brasília narrada desde sua chegada à cidade no início dos anos 60, quando foi convidado para organizar o ensino de música na Universidade de Brasília (UnB), passando pela criação da estrutura da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional e descrevendo a paixão pela bailarina Gisèle Santoro.
Leia entrevista com a autora Fátima Bueno:
Qual foi a motivação para a realização deste livro?
Foram várias. Brasília é tema recorrente em alguns trabalhos já realizados na área de artes visuais e no meu primeiro livro, “Estou na Quadra”, publicado em 2010. No momento em que decidi pesquisar a música local, eu frequentava uma roda de choro da velha guarda, com alguns nomes representativos de estilos diversos – o Pernambuco do Pandeiro, o Fernando Lopes (cantou no Catetinho para JK), o Walcyr Tavares, um dos primeiros diretores do Clube do Choro de Brasília, por exemplo. Também frequentava os eventos da Escola de Música. E música foi o que mais marcou minha chegada em Brasília, quando descobri gêneros tão diferentes como baião e concerto sinfônico.
A pesquisa é um elemento chave neste projeto. O que mais a surpreendeu nesta fase?
A falta de registro das atividades e eventos musicais dos primeiros anos, tanto nas escolas, universidades quanto em emissoras de rádio e publicações específicas.
A música em Brasília nasceu da fusão de vários elementos culturais e sociais. Mesmo assim, passado esses anos todos, percebe-se alguma identidade musical na cidade?
Houve fases em que predominaram tendências de fora e modismos nacionais, como em toda a metrópole. Porém, o que se consolidou e tem crescido é o interesse pela música de qualidade instrumental, em especial o choro, que agrega diversas faixas de idade. A Escola de Choro Raphael Rabello e a Escola de Música de Brasília são referências nacionais.
“Peixe-Vivo à Geração Coca-Cola”, de Fátima Bueno, editora: MusiMed
Lançamento na terça (7/11), às 19h30, no Museu Nacional Honestino Guimarães, com mostra fotográfica. R$ 50. Entrada gratuita. Classificação indicativa livre.