Jukebox Sentimental: disco de estreia dos Mutantes completa 50 anos
Clássico trabalho filiado ao movimento da Tropicália trouxe uma revolucionária mistura de brasilidade, Beatles e rebeldia comportamental
atualizado
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Eis que um dos discos fundamentais da música brasileira completa 50 anos em 2018. Lançado em junho de 1968, o álbum de estreia dos Mutantes chegaria às lojas causando misto de surpresa, repúdio e frescor no conturbado cenário musical da época. E essa efeméride do rock nacional, simbolicamente, não poderia vir num momento mais oportuno, quando um dos integrantes do célebre trio, a roqueira Rita Lee, completou 70 verões.
“De fato, no final dos anos 60, eles eram uma das bandas mais criativas do mundo”, comenta o jornalista gaúcho Fernando Rosa, especialista na banda. “A banda era muito boa e, quando alguém os via, se apaixonava”, comenta Rosa, que batizou sua revista virtual sobre música com a alcunha “Senhor F”, um dos sucessos do trio.Jovens paulistas da Pompeia de espírito irreverente e anárquico, eles estavam no centro do furacão e embarcaram de olhos fechados no “delírio brasileiro” que emergia naquele momento de ebulição cultural que ficou conhecido como Tropicália. Tudo começou quando o trio, sugerido pelo maestro Rogério Duprat, gravou com Gilberto Gil “Domingo no Parque”. No seu livro “Verdade Tropical”, Caetano Veloso lembra a empolgação do amigo.
“São meninos ainda, e tocam maravilhosamente bem, sabem de tudo, parece mentira”, revelaria o sorridente cantor baiano, meio que admirado e assustado. “Depois de terem participado dos discos de Gil, Caetano e Duprat, o conjunto funcionava como uma espécie de espinha dorsal do grupo tropicalista”, endossaria o jornalista Carlos Calado, autor de “A Divina Comédia dos Mutantes”, biografia oficial da banda lançada pela Editora 34, em 1995.
“Panis Et Circenses”, em rara apresentação ao vivo na TV Francesa:
Beatles brasileiros
E, de fato, os Mutantes, com sua rebeldia criativa e ousadia comportamental, misturando Beatles e Luiz Gonzaga, Jefferson Airplane e macumba, era bem mais do que meros músicos acompanhantes de emergentes estrelas da MPB, bagunçando o coreto da então “careta” MPB com novas informações estéticas e musicais, ideias que interferiam de forma incisiva no futuro grupo tropicalista, como bem destacou o biográfico da banda, Carlos Calado.
“Pareciam jovens ingleses da geração Beatles. Essa era uma diferença básica: ao contrário dos baianos, que olhavam o universo do rock de fora, os Mutantes passavam a impressão de viverem dentro daquele mundo. Um universo que os competentes Beat Boys (roqueiros argentinos que tocam com Caetano Veloso em ‘Alegria, Alegria’) também conheciam muito bem, mas sem o carisma dos Mutantes”, escreve o autor.
Mais do que natural então que o primeiro disco do trio fosse uma realidade. De olho nos meninos, a gravadora Philips, então no comando do franco-árabe André Midani, não titubeou, escalando o produtor Manoel Barenbein para a missão de decodificar as porra-louquices e ideias destituídas de regras que brotavam como um manancial de criatividade da cabeça dos irmãos Baptista e da ruivinha Rita Lee.
“Os Mutantes me davam subsídios para avançar no terreno das ideias. Minha função era coordenar o caos – e nem era um caos, porque eles sabiam exatamente o que queriam”, lembraria Barenbein, em entrevista para matéria especial de capa publicada na extinta revista “Show Bizz”, em novembro de 2000. “Como fazer uma música que pode ser ao mesmo tempo popular e avançada, à frente dos Beatles”, comentou o maestro Rogério Duprat na publicação.
Abaixo, algumas curiosidades do disco que dividiu a cena roqueira nacional nos anos 70:
A capa
Descendente de família do sul dos Estados Unidos, o polêmico artista plástico paulista Wesley Duke Lee, nos idos dos anos 60, era uma referência na arte vanguarda. É dele a foto da capa do primeiro disco dos Mutantes. Os detalhes, quem dá, é Rita Lee, em sua autobiografia. A capa preta de veludo usada pelo guitarrista Sérgio, por exemplo, foi costurada pela mãe de Rita a toque de caixa.
Os figurinos de Arnaldo e Rita foram garimpados no brechó de um chinês contrabandista. “Dentre os pedaços de cenários de teatros antigos que Wesley colecionava, escolhemos o de uma sala de visitas meio creepy e acrescentamos uma poltrona de plástico transparente de piscina com uma luz branca dentro”, detalha a roqueira.
Por trás de algumas canções do álbum…
“Ela é Minha Menina”
Um souvenir apresentado pelos escoceses do Belle & Sebastian, durante o Free Jazz Festival, em 2001, banda declaradamente fã dos Mutantes, assim como David Byrne, Sean Lennon, Beck, Devendra Banhart e… Kurt Cobain. É um clássico no repertório do trio e foi um mimo dado por Jorge Ben, após pressão de Rita Lee. Como a artista conta em sua biografia, certa manhã ela bateu à porta do rei do suingue, “exigindo” uma música para álbum de estreia da banda. Segundo a roqueira, ele, que participou da gravação da música, escreveu a música ali mesmo, de olho numa futura estrela da música brasileira. “Tempos depois, quando a cruzava nos bastidores da vida, então já muito famosa, trocávamos olhares e um sorrisinho cúmplice”, ironiza em sua autobiografia.
“Le Premier Du Jour”
Rita Lee entrou no estúdio com uma bomba de Flit (inseticida popular na época) nas mãos, deixando uma pulga atrás das orelhas do produtor Manuel Barenbein, que, num primeiro momento, tentou disfarçar indiferença. Até o grupo colocar o estranho objeto entre os instrumentos. Afinal, o que eles pretendiam com aquela geringonça? Canção resgatada do repertório das Teenager Singers – primeiro grupo musical da ruivinha –, então sucesso na voz da francesa Françoise Hardy, “Le Premier Du Jour” trazia a musa dos mutantes tocando também uma flauta doce, é só prestar atenção.
“Senhor F”
Chupada de “Being For The Benefit of Mr. Kite”, canção dos Beatles gravada na voz de John Lennon na sinfonia psicodélica “Sgt. Peppers”, “Senhor F”. Como declarou o guitarrista dos Mutantes, Sérgio Dias, em entrevista ao jornalista Fernando Rosa no início dos anos 2000, foi sua primeira composição escrita. É uma das raras canções do disco assinada pelo trio junto com a onírica “O Relógio” e a stoneana “Ave Gengis Khan”.
“Tempo no Tempo”
Em sua biografia oficial escrita sobre a banda, “A Divina Comédia dos Mutantes”, o jornalista Carlos Calado conta como o trio, na pré-história das redes sociais, se mostrava antenado com o que rolava na América e do outro lado do Atlântico, ao verter, para a língua de Camões, “Once There Was a Time I Thought”, sucesso dos Mamas & the Papas.
Para tanto, os três contaram com ajuda do doutor César, poeta e pai dos irmãos Baptista, que o ajudaram na elaborada e trabalhada versão da canção, após umas aulas sobre onomatopeia e aliteração com a turma do tropicalismo. O encontro foi no mítico quarto 212 do Hotel Danúbio, em São Paulo, point da nata do tropicalismo.
“Há sempre um tempo no tempo em que o corpo do homem apodrece/E sua alma cansada, penada, se afunda no chão/E o bruxo do luxo baixado o capucho/Chorando num nicho capacho do lixo/Caprichos não mais voltarão”, eram os primeiros versos dessa interpretação do grupo paulista ao delírio do quarteto de Nova York.