Jukebox Sentimental: Chris Blackwell, o homem que abraçou Bob Marley
O produtor jamaicano, branco, abriu as postas da indústria para o talento do conterrâneo
atualizado
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Todo mundo que é fã de reggae conhece a história. Londres, final de 1971. Zanzando pelas ruas da capital inglesa como se fosse um maltrapilho, depois de alguns projetos musicais malogrados, Bob Marley dá um peteleco no orgulho e bate à porta do produtor e fundador da gravadora Island, Chris Blackwell. Vaticinando um futuro promissor, o executivo, um jamaicano branquelo, descendente de ingleses de rica e tradicional família da ilha, não titubeou.
“Trabalhei com Bob Marley porque, assim como eu, ele queria internacionalizar o reggae”, diria anos mais tarde o empresário da música.
E foi o que aconteceu. O símbolo dessa parceria foi cristalizado no álbum “Catch A Fire”, dos Wailers. Lançado em 1973, o making of das gravações desse registro clássico pode ser conferido em documentário inédito de 1999, disponível, de graça, neste mês de dezembro, no Bis Play. Um belo presente de fim de ano para os amantes da música por sinal. Com direção de Jeremy Marre, o filme, com 1h de duração, surpreende.
Na fita, o produtor Chris Blackwell conta que, com o adiantamento de US$ 8 mil dado a Marley e os integrantes do Wailers, eles voltaram para casa e criaram o álbum. Não foi uma tarefa fácil porque, no começo, embora agraciados com boas críticas, os fãs de rock e música pop não encaravam com bons “ouvidos” o surgimento do reggae.
Sempre achei que seria um disco de ouro. Mas, após um ano, vendemos apenas 14 mil cópias. Acabou vendendo mais de um milhão, mas demorou muito
Chris Blackwell
Primeiro disco de reggae
De posse das gravações originais, o produtor então começou um trabalho que Bob Marley interpretou como o de “tradução”, para um formato mais mercadológico, das angústias, frustrações, desesperos e denúncias sociais registradas nas canções da banda.
Primeiro disco de reggae a entrar no mercado de rock, “Catch A Fire” contava com antológicas parcerias de outros nomes de peso do gênero na época, como Peter Tosh e Bunny Wailer. No filme, o produtor Chris Blackwell fala do trabalho de convencimento necessário para emplacar o disco no Reino Unido e América.
O tiro de misericórdia seria a apresentação da banda em 1973, no prestigiado programa “The Grey Old Whistle Test”, conduzido por David Attenborough, irmão mais novo do cineasta britânico, Richard Attenborough. Boa parte do público puritano torceu o nariz, mas era mais um degrau acima rumo ao sucesso. “Queria apresenta-lo como um disco de uma banda negra”, revela o homem responsável por projetar a figura de Bob Marley internacionalmente.
Depoimentos de arquivos de Marley e Peter Tosh, do próprio produtor Chris Blackwell, claro, além da viúva Rita Marley e de outros integrantes da banda, mostram como “Catch A Fire”, com seu discurso engajado, trouxe novas fontes musicais e temáticas.
Numa época em que acompanhar a globalização na palma da mão, como acontece hoje, era algo inimaginável, Marley e os Wailers universalizaram os problemas comuns do terceiro mundo e traumas caros aos afrodescendentes nas faixas “400 Years”, “Slave Driver” e “Concrete Jungle”.
Deve haver um lugar para mim nesta selva de concreto”, canta um Bob Marley pessimista diante da pobreza nos guetos jamaicano.
Com sua linha de baixo contagiante cheia de suingue, “Stir It Up”, talvez um dos grandes sucessos da carreira da banda na voz de Marley, é uma canção de amor dançante cheia de malícia. Escrita por Peter Tosh – que sempre brigou para ter mais espaço na banda – “Stop That Train”, um gospel reggae meio folk é a jornada de um homem solitário em busca de felicidade e comida.
Passados 45 anos depois de seu surgimento, é inegável o legado conquistado por “Catch A Fire”. Pioneiro em vários sentidos, o disco captou e ainda capta, de certa forma, em nove faixas, o batimento cardíaco do povo jamaicano. É só sentir… “Nós não precisamos de mais problemas/O que precisamos é de amor”, é o recado deixado em “No More Trouble”.