Jukebox Sentimental: CD psicodélico de Ronnie Von ainda é provocador
O álbum lançado em 1968 carrega impressionante caráter moderno
atualizado
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Se na música brasileira Roberto Carlos é o rei, o cetro de príncipe é dado por direito e mérito a Ronnie Von, que nos anos 1960 enlouquecia fãs país afora com suas longas madeixas quase cobrindo os grandes olhos verdes e sorriso ofuscante. É clássico o vídeo dele cantando a versão de Gir” dos Beatles, para delírio de um auditório cheio de histéricas meninas com a libido saltando pelos poros.
Ronnie Von cantando a versão de Girl, dos Beatles:
Filho de uma abastada família carioca, Ronnie Von, registrado, Ronaldo Nogueira, há 74 anos, sempre teve seu nome associado à Jovem Guarda, mas essa relação trata-se de um grande equívoco histórico. Ídolo adolescente que surgiu como resposta ao sucesso de Roberto Carlos e seus asseclas, o artista sempre fez questão de remar contra a correnteza no cenário musical. Pagou caro por isso.
O símbolo dessa revolta artística e pessoal aconteceria em 1968, com o lançamento do impactante álbum Ronnie Von. Um sopro de rebeldia e subversão, o disco marcou o início da fase psicodélica e vanguardista do cantor, então um jovem antenado com a modernidade sonora daquele final de década. O registro era tão revolucionário e à frente do seu tempo, que um diretor de vendas da gravadora tomou um susto quando escutou o trabalho.
“Isso não pode estar acontecendo com a gente”, desabou. “Queria sepultar o que eu tinha feito anteriormente”, diria anos mais tarde Ronnie Von.
De pequeno príncipe à anarquista
O “anteriormente” ao qual se referia Ronnie Von era sua fase de pequeno príncipe em que ele embalava plateias ao som de sucessos bobinhos como A Praça. Aliás, o título nobre foi dado pela amiga e apresentadora Hebe Camargo, numa referência ao personagem do clássico da literatura escrito pelo francês Antoine de Saint-Exupéry. Insatisfeito com os rumos da carreira, o artista resolveu radicalizar e se superou.
Esses sinais de insatisfação e vanguardismo se manifestaram bem antes do polêmico disco anárquico de 1968 surgir. Quando ninguém falava em Tropicalismo, por exemplo, Ronnie Von já andava com as principais cabeças do movimento, os baianos Gil e Caetano e os Mutantes. Aliás, foi o cantor quem batizou a banda com esse nome, antes chamada de Os Bruxos. A inspiração veio do livro de ficção científica Império dos Mutantes, do francês Stefan Wul.
Incentivado por essas novas amizades criativas e o fracasso de seu disco anterior, Ronnie Von Nº 3 – que contou com a participação dos Mutantes –, o artista aproveitou uma viagem do presidente da sua gravadora, a CBD, para se vingar. Acompanhado dos produtores, Manoel Barenbein e Arnaldo Saccomani – na época assistente de direção –, junto com o maestro Damiano Cozzella, o “pai da música eletrônica underground brasileira”, aprontou.
“Esse álbum é fruto de um sentimento de medo e vingança”, admitiria o artista no encarte do CD do álbum relançado em 2007. “Foi o único trabalho em toda a minha carreira sobre o qual eu tive controle total”, recordaria com o orgulho.
Um exercício de ousadia e liberdade artística, Ronnie Von (1968), com sua capa surrealista, misturava a sonoridade psicodélica de bandas como Beatles e Pink Floyd com lampejos do tropicalismo brasileiro e música clássica. Numa época pré-progressivo, fundia a fase mais experimental do The Who, e seu álbum Sell Out (1967), à narrativa marginal do cineasta Rogério Sganzerla. Basta conferir as faixas Silvia: 20 horas, Domingo e Anarquia.
Ronnie Von canta Anarquia:
Em Mil Novecentos e Além, sua paixão pela ficção científica ganha interpretação jazzística por meio de Arnaldo Saccomani, rosto conhecido hoje como jurados dos programas dos SBT.
A anarquia criativa atinge o ápice em Espelhos Quebrados, onde arranjos de cordas elisabetanos e barulhos de vidros estilhaçados, como denuncia o título, fazem par com uma letra que parece ter saído da costela de Lucy In The Sky With Diamonds.
Ronnie Von setentão cantando “Espelhos Quebrados:
Canções como Tristeza Num Dia Alegre, com sua debochada introdução espacial, e a vibrante Chega de Tudo eram provas de que o artista tinha fôlego de sobra para continuar experimentando como provou nos trabalhos seguintes: A Misteriosa Luta do Reino de Parassempre Contra o Império de Nunca Mais (1969) e A Máquina Voadora (1970).
Obras que lhe custaram a carreira naquele momento, mas provaram que Ronnie Von era bem mais do que um rostinho bonito na música brasileira.