Jukebox Sentimental: a falta que Cazuza faz à música brasileira
Os 60 anos de nascimento do visceral poeta serão lembrados com a turnê Faz Parte do Meu Show, que começa em São Paulo
atualizado
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Numa época em que o cancioneiro brasileiro carece de letras decentes, pungentes, cheias de indignação que reflitam sobre a imoralidade e ausência de ética que o país vive, figuras de poetas genuínos e desbocados como Cazuza são de uma falta brutal. O artista, que completaria 60 anos no próximo dia 4 de abril, formava ao lado de ídolos como Renato Russo e Humberto Gessinger uma tríade que refletiu em poética visceral os anseios, sonhos e desilusões de sua geração.
“Brasil, mostra a tua cara / Quero ver quem paga pra gente ficar assim / Brasil, qual é teu negócio / O nome do teu sócio / Confia em mim”, escreveu em Brasil, canção lançada há 30 anos e mais atual do que nunca. “A burguesia fede / A burguesia quer ficar rica / Enquanto houver burguesia / Não vai haver poesia”, lamentou em Burguesia, um ano depois.E logo ele, que era um autêntico burguês do Baixo Leblon da zona sul carioca. Nascido com nome de sambista, Agenor de Miranda Araújo Neto, o garoto de língua presa, mas ouvido esperto, virou Cazuza, cuja existência, em pouco mais de 30 anos, foi como uma ferroada dolorosa entre o excitante e perigoso mundo público e privado que trilhou até sucumbir ao vírus da AIDS em julho de 1990.
Aos 14 anos, depois de infernizar a rotina dos pais tocando fogo na privada e fazendo outras traquinagens pirotécnicas, foi trabalhar como divulgador de Djavan na Som Livre, gravadora da qual o pai, João Araújo, era presidente. Um dia, incomodado em ser o “filho do patrão”, pediu uma viagem para o exterior. Queria estudar fotografia em San Francisco. Mas antes de partir para Califórnia, aprontou uma das suas ao ser preso com amigos.
“Só saio daqui se todos saírem também”, bateu o pé, diante do pai, que ajeitava as coisas por debaixo dos panos, na base da propina corrupta paternal. “No fundo, eu admirava esse lado meio Robin Hood de meu filho. O que valeu para mim naquele episódio foi seu espírito solidário”, lembraria anos mais tarde o coroa João Araújo no livro “Só As Mães São Felizes”, escrito pela mulher, Lucinha Araújo, em depoimento à jornalista Regina Echeverria.
Pro Dia Nascer Feliz
Letrista de mão cheia desde os 15 anos, a primeira experiência de Cazuza como cantor foi embalando Odara, de Caetano Veloso, numa adaptação escrachada de A Noviça Rebelde no Teatro Cacilda Becker Cazuza, no Catete. A mãe prestigiou a estreia e surtou: “Meu Deus, esse menino canta bem e eu nem sabia!!!”, conta na biografia que escreveu sobre o filho.
https://www.youtube.com/watch?v=NkNv2BflaSU
Fã de Novos Baianos, Gilberto Gil e Caetano Veloso, Cazuza foi um adolescente que seguia Rita Lee aonde a rainha do rock fosse entre Rio e São Paulo. Também era fascinado pela voz rascante de Janis Joplin e pela densidade da cantora de blues Billie Holiday. No começou dos anos 80, abraçou o rock quando o cantor Léo Jaime declinou o convite de ser vocalista de uma banda do Rio Comprido, zona central do Rio.
“A banda se chamava Barão Vermelho e achei que era esporrenta demais. Falei que achava legal o lance deles, mas que tinha muito mais a cara de um amigo”, contou anos depois o goiano Léo Jaime, indicando então o jovem “Caju”, como ele chamava Cazuza.
A química entre o letrista Cazuza e guitarrista Roberto Frejat foi tão perfeita que logo a dupla era tachada pela imprensa tupiniquim de o Jagger/Richard do rock nacional. “O Barão foi o primeiro porta-voz de sua geração e, neste sentido, a primeira banda do BRock, o rock brasileiro que chegou ao disco na década de 80”, atestou o jornalista Arthur Dapieve no livro BRock – O Rock Brasileiro Nos Anos 80, lançado pela editora 34 em 1995.
Sob a batuta do produtor e jornalista Ezequiel Neves, o grupo, uma esfinge de espontaneidade, lançaria o primeiro álbum em setembro de 1982, trazendo clássicos como Billy Negão, Bilhetinho Azul, a acachapante Down em Mim e o sucesso instantâneo Todo Amor que Houver Nessa Vida, reverenciada por Caetano Veloso num show no Canecão, durante o lançamento do disco Uns.
Um dia antes, por sinal, os dois quase foram aos sopapos na mítica Pizzaria Guanabara, no Baixo Leblon, depois de o baiano flertar com um namorado de Cazuza. Foi no embalo dessa faixa, aliás, que o grupo se apresentou em Brasília, em 1983, no Drive-In. O auge da banda com Cazuza à frente aconteceria no Rock In Rio (1985), quando o cantor, esbanjando autoconfiança, ganhou o público cantando Pro Dia Nascer Feliz, hino da redemocratização.
“Que o dia nasça lindo pra todo mundo amanhã. Por um Brasil novo, com rapaziada esperta”, disse, diante de plateia formada por mais de 200 mil pessoas ávidas para ver os australianos do AC/DC.
Um garoto Bossa Nova
Após o terceiro álbum da banda, Maior Abandonado, Cazuza, se sentindo uma ilha entre os outros integrantes do Barão, pediu para sair, lançando logo na sequência seu primeiro disco solo, Exagerado, um grito de liberdade estética e libertinagem sonora que tinha a ver mais com Lupicínio Rodrigues do que com os Rolling Stones. “Meu filho genial é o Noel Rosa dessa geração”, diria sem modéstia a mamãe coruja.
De fato, um romântico inveterado, cuja poesia tinha um poder de comoção enorme, como bem percebeu Caetano Veloso, o artista tinha um lado MPB que extravasou em letras simples, mas fortes. É o que evidencia, por exemplo, a emocionante Codinome Beija-Flor, escrita em parceria com Ezequiel Neves e Reinaldo Arias. A canção, também imortalizada na voz de Luiz Melodia, foi escrita na cama de um hospital, quando observava os pássaros na janela.
E para que não reste dúvida de que Cazuza, na essência, era mesmo um garoto Bossa Nova, será lançada nesta quinta (5/3), em São Paulo, a turnê Faz Parte do Meu Show. O título, uma alusão a grande sucesso homônimo do roqueiro que homenageia o gênero criado há 60 anos por João Gilberto, reúne um trio inusitado. O bam-bam do gênero, Roberto Menescal, a cantora e pianista Leila Pinheiro e Roberto Santos, ex-baixista do Barão Vermelho.
A ideia é muito simples e oportuna. Rearranjar, no ritmo que consagrou nomes como João Gilberto, Tom Jobim, Carlos Lira e o próprio Menescal, os maiores os maiores sucessos do eterno exagerado Cazuza, hits que atravessaram o tempo como Bete Balanço, Um Trem Para as Estrelas, Blues da Piedade e a já citada Pro Dia Nascer Feliz, entre outras.