Crítica: Kanye West ajoelha e reza no belíssimo Jesus Is King
Com apenas 27 minutos, novo disco do rapper mergulha em temas espirituais e funciona como profissão de fé de um artista inimitável
atualizado
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Jesus Is King, o novo e nono disco de Kanye West, desafia qualquer cinismo típico da contemporaneidade ao se apresentar como uma profissão de fé de um artista em busca de iluminação espiritual. Um álbum com 11 faixas distribuídas em rápidos 27 minutos. Mais direto, impossível. E ponto final. Não há nada de autoirônico ou sarcástico nessa jornada. “Isto não é sobre uma maldita religião / Isto é uma missão, não um show”, testemunha o fiel contrito na faixa God Is.
O rapper mais falastrão – e, possivelmente, mais talentoso – do século 21 não se cansa de se reinventar. Só parecia faltar mesmo um culto, uma missa em que ele simplesmente ajoelha e reza – cantando à beça. “Dizem que a semana começa na segunda / Mas os fortes começam no domingo”, avisa, em Selah, uma das melhores do sermão.
Rendição e redenção
West nunca foi lá um cara abertamente religioso, mas jamais escondeu suas inclinações espirituais. Um de seus primeiros hits foi Jesus Walks, do disco de estreia, The College Dropout (2004). O mesmo CD trouxe Through the Wire, a crônica de um acidentado que viu a morte de perto. Ele retorna a esse episódio em On God. Explica que sempre que flertou com o lado de lá, coloriu o cabelo. “Eu sobrevivi / Isto foi Deus”, diz.
Mais recentemente, o controverso disco The Life of Pablo (2016) articulou a voz do amigo pastor Kirk Franklin na faixa de abertura, Ultralight Beam, versos de rendição no díptico Father Stretch My Hands – que ganha quase uma parte 3 em Follow God – e a brincalhona comparação a Maria e José em Wolves – sim, o casal Kim e Kanye A.C.
Três anos depois, o Evangelho segundo Ye ganhou forma definitiva. Jesus Is King consagra, em versão de estúdio, sua singular turnê Sunday Service. Desde janeiro, um coral homônimo acompanha o rapper em apresentações a céu aberto. No setlist, versões gospel do farto cancioneiro de Kanye e, claro, algumas das faixas agora lançadas.
A celeridade do álbum impõe uma objetividade incomum a West, que já havia tentado algo parecido no trabalho anterior, o pouco notável Ye (2018), com 23 minutos de duração. Desta vez, ele consegue forjar uma narrativa sólida e envolvente a partir de beats suaves e uma verve poética que você não espera encontrar em um disco gospel.
Em Closed On Sunday, West reafirma a fé como algo libertador: “Nada de viver mais pela cultura / Somos escravos de ninguém”. Everything We Need projeta essa vontade de renascer, recomeçar. Nada mais justo para um artista tão acostumado a falar bobagens em entrevistas, constranger colegas, disparar contra ex-colaboradores, tuitar sem filtros. “E se Eva fizesse um suco de maçã? / Você faria o que Adão fez? / Ou diria, ‘baby, vamos colocar de volta na árvore'”, elabora.
Hands On reúne mais um tantinho de ruminações parecidas: “Eu mereço todas as críticas de vocês / Se é esse todo o amor que vocês têm, é tudo que vocês têm”. Sem medo de ser feliz, West insere até uma participação do saxofonista Kenny G em Use This Gospel.
Ame ou odeie, no céu ou no inferno, Ye é sempre fascinante.
Avaliação: Ótimo