Mulheres assumem o protagonismo na produção de eventos culturais do DF
Das picapes aos bastidores, elas dão novo tom e trazem diversidade à cena noturna brasiliense
atualizado
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Por muito tempo, o universo da arte foi marcado pela expropriação do trabalho e sexualidade femininos. Ao menos nos bastidores da indústria cultural, esse capítulo da opressão sexista começa a chegar ao fim. É cada vez maior o número de mulheres em postos de liderança dentro do staff de grandes eventos, desde a idealização até a produção dos projetos.
A profissão antes dominada por homens, tornou-se o caminho para driblar a falta de acesso à cadeia produtiva da cultura. Cada vez mais mulheres vêm criando seus próprios espaços de fala artística e, de quebra, geram empregos e visibilidade para tantas outras. No embalo do Dia Internacional da Mulher e da forte campanha contra o assédio realizada no Carnaval 2019, o Metrópoles apresenta trabalhadoras culturais da capital federal que têm protagonizado na noite brasiliense.
Para Jaqueline Fernandes, 37 anos, as mulheres têm sido responsáveis pela maior parte das mudanças sociais e culturais no mundo todo. “Abrir espaços é, inquestionavelmente, o que nós fazemos o tempo todo. Não consigo pensar em nenhum espaço que nos tenha sido concedido, em vez de conquistado”, afirma a idealizadora do Festival Latinidades — projeto responsável por dar visibilidade ao Dia Internacional da Mulher Negra, Latino Americana e Caribenha, celebrado em 25 de julho. A festividade incluiu o Distrito Federal na rota de eventos de cultura negra da América Latina.
Visibilidade da mulher negra
De acordo com a idealizadora, o Latinidades surgiu de várias inquietações. A primeira delas, a carência de eventos voltados e produzidos por mulheres negras no Distrito Federal. Assim como a falta de espaço para a circulação da produção intelectual dessas artistas. Jaqueline coordenou sete, dos 11 anos do festival.
“Como nos ensina um importante provérbio nigeriano: ‘é preciso uma vila inteira para criar uma criança'”, cita. Ela saiu em 2014, quando foi nomeada como subsecretária da pasta de Cidadania e Diversidade Cultural, da Secretaria de Cultura do DF, em 2014.
Jaqueline acredita que o fato de as mulheres ocuparem de forma massiva a área do entretenimento, tem causado uma mudança significativa no status e no perfil esperado para a profissão. “Quando os homens eram maioria, os produtores eram vistos pela sociedade como figuras poderosas, donos das carreiras artísticas. Hoje, que somos maioria, o status da produção cultural diminuiu consideravelmente. O perfil esperado de nós, não raramente, é disponibilidade integral, baixa remuneração e até voluntariado”, critica.
Segundo a brasiliense, desigualdades presentes no mercado de trabalho também se refletem na produção cultural. Isso porque a desvalorização do trabalho e das contribuições das mulheres para a sociedade tem sido historicamente naturalizado pelas corporações machistas. “De modo geral, as áreas com maior predominância feminina são as mais precarizadas, seguindo os indicadores de gênero no mercado de trabalho: jornada tripla, menores salários, informalidade, violências, assédios e invisibilidade”, completa.
Coletivos de apoio
Reunir amigas e parceiras de trabalho em coletivos e realizar iniciativas assumidamente feministas na área da produção cultural também faz parte da vida da DJ Donna, 42 anos. Nome importante da cena black dentro e fora do quadrado, a artista é idealizadora e produtora do projeto Conexões Urbanas Impressões Femininas na Cultura de Rua. O festival conta com lineup composto exclusivamente por mulheres e visa, ainda, a capacitação do público feminino nos quatro elementos do hip-hop (breakdance, DJ, MC e o grafite).
Estamos mais ativas em editais e captação de verbas. Nos capacitamos, profissionalizamos e, assim, conseguimos driblar o preconceito. É a nossa maneira de boicote. Somos presentes em maior número, criando nosso próprio acesso e incluindo umas as outras
DJ Donna
Por escolher trabalhar com mulheres e a comunidade LGBTQI+, DJ Donna garante não sofrer com a desvalorização salarial, como a colega Jaqueline Fernandes mencionou acima. “São sempre parceiros leais, que entendem a importância do espaço conquistado”, ressalta.
Pronta para arrastar multidões
Idealizadora de um dos blocos de Carnaval mais populares de Brasília, Andie Araújo, 38 anos, se diz apaixonada pela produção cultural. “A responsabilidade de fazer uma festa que é uma das nossas maiores expressões culturais, torna tudo mais intenso. É extremamente vibrante o processo de criação, de ver sair do papel tudo que você imaginou e colocar na rua”, explicita.
Neste ano, o Quem Chupou Vai Chupar Mais reuniu mais de 60 mil pessoas na área externa do Museu Nacional da República. Na coordenação geral, além de Andie, tinha outra produtora, Rayane Coutinho. E, das 20 pessoas da equipe de apoio, 17 eram mulheres.
Muitas ali estavam trabalhando pela primeira vez. Foi a forma que encontramos de agregar mais mulheres no processo de realização. Duvido que 1% do público presente, soubesse que o bloco foi criado por uma mulher, executado por várias e que ali, no dia, outras tantas estavam responsáveis por áreas cruciais
Andie Araújo
Para Andie, as mulheres vivem tendo de se impor e provar a capacidade de se realizarem em qualquer área. E no Carnaval não seria diferente. “É muito difícil para um homem escutar que você domina aquele assunto tanto quanto ele. São inúmeras nossas adversidades, mas aos poucos vamos vencendo e mostrando nosso trabalho. Da burocracia até a pós-produção, mulheres colocaram na rua blocos gigantescos não só de tamanho de público, mas de representatividade”, pontua.
Arte contra o machismo
Uma das agitadoras culturais mais famosas de Brasília, Jul Pagul se qualifica como uma mulher carnavalesca e tem transformado a festa popular realizada na capital federal em um grande momento de empoderamento feminino.
“Nós precisamos despoluir esse imaginário que nos coloca sempre como mulheres loucas, putas, vadias ou violentadas. E temos a arte e a cultura como uma ferramenta de transformação da sociedade”, explica a empreendedora. No Carnaval 2019, ela foi responsável pela Praça dos Prazeres, um dos espaços de folias do DF.
De acordo com Pagul, neste ano, 18 blocos passaram pela Praça dos Prazeres, sendo 11 deles, feitos exclusivamente por mulheres. “Em 2019, elas foram às ruas e protagonizaram o Carnaval. A gente pede respeito à nossa produção, à nossa arte feminista, aos nossos territórios e todas as agremiações se colocaram a favor da perspectiva feminista e de gênero”, defende.
Apesar disso, a produtora garante que o fato de ser mulher impôs muitos desafios para a realização do projeto. “Tive de contratar um homem para ele ficar exclusivamente dialogando com o Estado, pois conosco era inviável”, relata, mas não desanima. “Como toda mulher a gente tem muito medo, mas a estamos dispostas a enfrentar todas as barreiras”, encerra.