Regulação do streaming coloca serviços e governo em lados opostos
Proposta do senador Humberto Costa (PT-PE) define regras para atuação de plataformas de streaming no Brasil. Serviços defendem outro modelo
atualizado
Compartilhar notícia
O streaming virou uma realidade no Brasil – estudo da Kantar Ibope, por exemplo, estima que cerca de 44 milhões de brasileiros utilizam ao menos uma das plataformas disponíveis no mercado. O crescimento desse modelo, que tem dado “dor de cabeça” para as TVs abertas e fechadas, jogou luz para um debate que ocorre no Congresso Nacional: a regulamentação dos serviços de vídeo sob demanda (VoD).
Um projeto em tramitação na comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado Federal visa definir regras para a atividade de empresas como Netflix, Amazon Prime e HBO Max no Brasil.
De um lado, está o atual governo e setores do audiovisual que defendem a ideia de os serviços de streaming contribuírem para o fomento da produção nacional; do outro, as plataformas entendem que a criação das regras seria um entrave no funcionamento e alegam já investir em séries e filmes brasileiros.
As principais plataformas em operação no Brasil, de fato, têm investido em conteúdos nacionais. No mês de julho, por exemplo, a Netflix anunciou a 2ª temporada de De Volta aos 15, com Maísa e Camila Queiroz; o Prime Video estreará Novela e O Negociador; por fim, a HBO Max inaugura, neste domingo (9/7), o true crime Massacre na Escola – A Tragédia das Meninas de Realengo.
Mesmo com os títulos nacionais sendo lançados e/ou produzidos, a ideia do setor audiovisual brasileiro é instituir a regra por meio de lei, obrigando a contrapartida do serviços que atuam no país.
De autoria do senador Humberto Costa (PT-PE), o PL 1.994/2023 prevê, entre outras coisas, a instituição de um percentual obrigatório de conteúdos audiovisuais – em número a ser determinado, posteriormente, pelo Poder Executivo, e o investimento de até 4% das receitas no fundo de Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine).
O debate envolve cifras bilionárias. Dados de estudo realizado pela Oxford Economics, apontam que o setor colaborou, em 2019 (dados mais atuais), com R$ 24,5 bilhões no Produto Interno Brasileiro (PIB) e, indiretamente, injetou R$ 55,8 bilhões na economia.
Em entrevista ao Metrópoles, o senador Humberto Costa defende que essas plataformas têm obtido “lucros bastante expressivos” no Brasil, sem nenhum tipo de contrapartida em termos de pagamento de impostos, por exemplo.
“Quase todas as atividades culturais já são reguladas, como é o caso do cinema e dos canais de TV por assinatura. O pagamento da Condecine e a definição da cota nacional representam importante estímulo ao audiovisual brasileiro, que é uma parcela expressiva do nosso Produto Interno bruto (PIB), reflete em prestígio internacional e contribui para a formação da nossa identidade, além de gerar muitos empregos”, avalia o senador.
Entidades ligadas aos serviços de streaming avaliam que a criação das regras no Brasil atrapalharia a consolidação das empresas de VoD no país, visto que, segundo o setor, o uso deste tipo de tecnologia ainda estaria em fase de maturação.
As empresas entendem que, antes de uma ação regulatória, o Brasil precisaria oferecer um ambiente mais competitivo que atraísse mais investimentos na área audiovisual, como isenções fiscais e políticas de crédito.
Um dos modelos mais citados pelas empresas é do estado norte-americano da Georgia, conhecido como a “Hollywood do Sul”, que oferece até 30% de isenção fiscal para a realização de filmes ou séries televisivas.
A política fez com que, entre 2007 e 2016, a indústria aumentasse os gastos 2.150% somente na Georgia e atraísse produções como Stranger Things, Vingadores e Jogos Vorazes.
Desenvolvimento do setor audiovisual brasileiro
Apesar das críticas das empresas, o governo brasileiro entende que o PL pode trazer maiores benefícios ao setor.
“Estamos vivenciando um momento de reconfiguração da política nacional do audiovisual. O segmento de VoD está maduro tecnicamente e, em termos políticos, há um bom ambiente para a tramitação do marco regulatório”, analisa a secretária do audiovisual do Ministério da Cultura (MinC), Joelma Gonzaga, em entrevista ao Metrópoles.
Ela informa que o MinC instituiu um grupo de trabalho com o objetivo de aprimorar os normativos do projeto de lei: “A intenção é consolidar um documento que estimule desenvolver a produção brasileira independente, trazendo resultados econômicos para o país”.
Marina Rodrigues, produtora executiva focada em políticas públicas do audiovisual, entende que o projeto de lei traria maiores benefícios para os trabalhadores da indústria.
“O Brasil, como segundo maior mercado da América Latina, também precisa defender o seu desenvolvimento interno”, pontua. “Hoje, as plataformas negociam de maneira literal, e os autores e idealizadores não ganham retorno para além do que foi recebido para produzir a obra, o que, por exemplo, é a mesma situação que tem levado os roteiristas para as ruas nos Estados Unidos“, completa.
Streaming fora do Brasil
Fontes ligadas às empresas de streaming alertaram ao Metrópoles que a instituição das regras poderia, de alguma forma, impedir o funcionamento das plataformas no Brasil, sob o argumento de que os custos de atuação no país ficariam “inviáveis”.
A secretária Joelma Gonzaga discorda da análise e lembra que o modelo regulatório segue tendência mundial.
“Não há por que se preocupar com esse cenário. Não há perspectiva de que ocorra por aqui algo muito distinto do que é praticado lá fora”, diz Gonzaga.
Para ela, a tendência é de que o PL resulte “no crescimento do setor audiovisual brasileiro, com impactos na geração de emprego e renda, bem como na consolidação de um modelo de negócio cada vez mais atrativo”.
O projeto discutido no Congresso Nacional brasileiro se baseia em normas que já são realidade, por exemplo, nos 27 estados-membros da União Europeia.
Desde 2018, em países como França, Portugal, Alemanha e Itália, a regulamentação determina que 30% do conteúdo levado ao ar por serviços de vídeo on-demand sejam produzidos localmente.
Em abril deste ano, o Canadá também aprovou lei que obriga as plataformas a promoverem o conteúdo audiovisual canadense. Agora, as plataformas on-line estão sob as mesmas regras que as emissoras de TV e rádio do país, ou seja, pelo menos 30% de suas receitas devem ser destinadas à promoção da produção nacional.