Cartas a uma Negra promove encontro literário entre duas gigantes
Edição recém-lançada pela editora Todavia vale a leitura. Confira a resenha de Maria Clara Machado
atualizado
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A literatura de Françoise Ega (1920-1976) finalmente chega ao Brasil com a recém-lançada edição de Cartas a uma Negra, pela editora Todavia. Escrito entre 1962 e 1964, o diário epistolar narra o dia a dia da autora franco-martinicana quando trabalhava como faxineira em Marselha, no sul da França. Ela descreve a sociedade francesa hierarquizada e a exploração das mulheres martinicanas, a partir de uma visão profundamente empática e crítica.
Para a leitora e o leitor brasileiros, além da narrativa fluida, que prende a atenção sem esforço da primeira à última linha, o livro resulta de uma ligação insuspeita da autora com uma das escritoras mais lidas e traduzidas do país, Carolina Maria de Jesus.
Ega conheceu a obra da brasileira pela leitura de um artigo na revista francesa Paris Match, publicado em maio de 1962: “Eu descobri você, Carolina, no ônibus. Levo vinte e cinco minutos para ir até meu emprego. Penso que não tem a menor serventia ficar se perdendo em devaneios no trajeto para o trabalho. Toda semana me dou ao luxo de comprar a revista Paris Match; atualmente, ela fala muito dos negros.”
Naquele ano, Carolina Maria de Jesus lançava a versão em francês de seu livro mais popular, Quarto de despejo – um diário em que narra o cotidiano na periferia de São Paulo.
Sucesso de vendas, o livro foi traduzido para 14 línguas e intitulado Le dépotoir na França. Ega leu alguns trechos do livro na revista, além de um perfil de Carolina de Jesus que a deixou fortemente tocada com a descoberta de uma escritora negra como ela, pobre como ela, mãe como ela e trabalhadora como ela.
Guardadas as diferenças entre as duas, a vida dura de Carolina Maria de Jesus no Brasil e a de Françoise Ega na França, além do gosto partilhado pela escrita, as aproximava, conforme confidencia Ega nas cartas: “tudo o que você escreveu, eu conheço”.
A partir da leitura do diário de Carolina de Jesus, Ega decide colocar em palavras o correr dos próprios dias e divide com a destinatária Carolina seu cotidiano repartido entre o cuidado com os cinco filhos, o trabalho em casas de família e a luta para se dedicar à literatura. No entanto, as missivas nunca foram enviadas à Carolina Maria de Jesus, embora Ega tenha buscado seu paradeiro sem sucesso. Sem jamais receber respostas, Ega segue essa conversa literária a partir da abstração da figura da destinatária Carolina, incarnada em última instância pela leitora e o leitor das cartas. Trata-se, portanto, de uma interação inventada, ficcional, ao mesmo tempo em que a escritora redige uma conversa consigo mesma, o seu diário.
O livro permite que os leitores acessem ainda uma realidade diferente da França e alcance uma outra Europa, a das mulheres migrantes antilhanas, sem que a voz original da autora se perca no panorama social que atravessa a narrativa.
Ela examina sem rodeios e romantizações a política francesa da época, que buscava atrair trabalhadoras da Martinica e Guadalupe para trabalharem como domésticas e babás: “patroas de todo tipo aderiram à moda. Pagam a viagem para as meninas que […] deixam a ilha e logo se veem com o aspirador na mão, primeira lição para entender como a banda toca por aqui”.
A escrita de Françoise Ega coloca a vida das mulheres negras, que ocupam posição inferior na hierarquia social francesa, como centro da narrativa, oferecendo sua visão de dentro do sistema de humilhação e preconceito com profunda empatia e solidariedade pelas conterrâneas, a quem chama de “irmãs”. De modo que a leitura da narrativa se torna uma ferramenta eficaz de desalienação do passado e do presente, na medida em que joga luz sobre mecanismos de exploração que alimentam os sistemas de desigualdades mundo afora. Mas não apenas. As cartas são também a inscrição literária do afeto e dos vínculos entre mulheres negras profundamente exploradas que resistem com força, mas sem perder a ternura.
Publicadas postumamente em 1978 na França – Ega faleceu em 1976 –, só agora as cartas a Carolina Maria de Jesus chegam ao Brasil, numa edição primorosa que faz jus à dimensão transatlântica desse encontro literário entre as duas escritoras.
*Maria Clara Machado é jornalista, pesquisadora e tradutora. Também é doutoranda em literatura pela Sorbonne Nouvelle e pela Universidade de Brasília.