Livro reúne mais de 100 crônicas inéditas de Clarice Lispector
Organizado por Pedro Karp Vasquez, a obra joga mais luz ao lado jornalista da escritora
atualizado
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Poucos dias antes de morrer, a caminho do hospital num táxi com uma pessoa que a história não registrou, Clarice Lispector dispara: “Vamos brincar de faz de contas. Nós não estamos indo para o hospital, eu não estou doente e vamos para Paris”. Atento à conversa, o motorista não se contenta: “Posso ir junto?”. Ela responde: “Pode levar a namorada também”.
A história, um extrato do cotidiano com toques de surrealismo, poderia figurar em algumas das crônicas que a escritora e jornalista escreveu ao logo da vida com seu estilo bem particular de narrar o sentimento singular do mundo. Essas impressões e sensações estão no livro Clarice Lispector – Todas as Crônicas, lançado pela Rocco. O projeto chega às livrarias dois anos depois da editora ter lançado uma coletânea de contos da autora.
“A proposta era de reunir em livro realmente a totalidade das crônicas de Clarice Lispector, de modo que foi preciso efetuar uma pesquisa em todos os jornais e revistas com as quais ela havia colaborado ao longo do tempo”, conta o escritor Pedro Karp Vasquez – organizador da obra. “Isso porque, até então, apenas crônicas publicadas no Jornal do Brasil haviam sido parcialmente reunidas no livro A Descoberta do Mundo”, completa.
Para tanto, um minucioso levantamento foi realizado pela pesquisadora Larissa Vaz, que vasculhou os arquivos de bibliotecas e instituições culturais como a Fundação Casa de Rui Barbosa e o Instituto Moreira Salles. A missão? Resgatar crônicas publicadas por Clarice nos jornais A Manhã, O Jornal e Última Hora, além das revistas Joia e Senhor.
“Larissa foi obrigada a fotografar com o celular os textos que encontrou, pois a grande maioria nunca havia sido microfilmada, reproduzida fotograficamente ou escaneada. Com esse material em mãos, efetuamos um cruzamento para evitar eventuais repetições”, detalha Vasquez.
Filosofia do cotidiano
Dividido em três partes, a obra, um catatau com mais de 700 páginas, reúne 120 textos inéditos em livro. A primeira é dedicada às crônicas escritas para o Jornal do Brasil entre agosto de 1967 e dezembro de 1973. Nessa época, também eram cronistas no diário o capixaba Carlinhos de Oliveira e o mineiro Carlos Drummond de Andrade.
A segunda parte traz os textos publicados nas revistas Senhor e Joia, além dos jornais Última Hora – o revolucionário diário de Samuel Wainer –, e O Jornal. A terceira reproduz crônicas reunidas no livro Não Esquecer.
Podemos dizer que Clarice escreveu no momento em que a crônica carioca estava em seu auge. Mas ela não se parecia com ninguém, tinha um estilo único, inimitável e inovador
Pedro Karp Vasquez
Nascida na Ucrânia, em 1920, mas criada entre Maceió (AL) e Recife (PE), até os 16 anos, quando se mudou para o Rio de Janeiro, Clarice Lispector começou sua relação com o jornalismo ainda cedo, nos tempos de estudante de Direito. As últimas crônicas que escreveu foram publicadas duas semanas antes de sua morte, em 9 de novembro, de 1977. O auge da carreira aconteceria nos anos 1960, quando assumiu a coluna do Jornal do Brasil.
A solidão entre os edifícios e o mar na Avenida Atlântida, o drama das baleias encalhadas nas praias do Leme e Leblon, a simpatia e timidez do cantor Chico Buarque, os problemas sociais do país, enfim, um bate-papo descontraído com o chofer de táxi. São alguns temas do cotidiano transformados por Clarice em questões filosofias pessoais de profundidade única na sua relação com o leitor. “Sinto-me tão perto de quem me lê”, costumava dizer.