Livro narra censura a Roque Santeiro durante a ditadura militar
A jornalista Laura Mattos explora a jornada da novela, que foi impedida de ser exibida em 1975 e teve de ser regravada 10 anos mais tarde
atualizado
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Há oito anos, a jornalista Laura Mattos iniciou uma pesquisa sobre a obra de Dias Gomes (1922-1999), um dos maiores dramaturgos brasileiros, autor ainda de grandes telenovelas. Seu projeto inicial era o de fazer uma biografia. Em um mestrado na USP, porém, entre 2014 e 2016, o trabalho ganhou profundidade no momento em que Laura destacou três momentos da obra de Gomes que exemplificam a atuação de órgãos de censura ao longo de três décadas. O resultado é o bem construído Herói Mutilado – Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura, livro que ela lança nesta terça-feira (22/10/2019), na Livraria da Vila.
Trata-se da ferrenha perseguição sofrida por Dias Gomes graças à trajetória de seu personagem, um falso herói de guerra. Surgiu pela primeira vez em uma peça de teatro, O Berço do Herói, que estrearia em 1965 se não fosse proibida pela censura do governo militar, incomodado com a crítica explicitamente humanista à forma como se constroem mitos heroicos baseados em fatos reais – o texto trata da idolatria que uma pequena cidade dedica ao cabo Jorge, aclamado por ter morrido com bravura na 2.ª Guerra quando, na verdade, ele fugiu do front depois de atacado por uma crise nervosa.
Dez anos depois, em 1975, já consagrado como autor de telenovelas, Dias Gomes disfarçadamente adaptou a própria peça e a transformou em Roque Santeiro, cujo primeiro capítulo nem sequer foi exibido: naquele 27 de agosto, a Globo recebeu ofício do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), censurando a novela – o governo percebeu que a peça era a origem do folhetim. Trinta e seis capítulos já tinham sido gravados com Lima Duarte no papel de Sinhozinho Malta, amante de Porcina (Betty Faria), viúva do milagreiro Roque (Francisco Cuoco), que volta à cidade de Asa Branca 17 anos depois de ser canonizado como um herói morto.
Não adiantou nem um feroz editorial escrito por Roberto Marinho, então presidente das Organizações Globo, que foi lido no Jornal Nacional. Finalmente, em 1985, já na fase de abertura política, a novela foi exibida, agora com Regina Duarte como Porcina e José Wilker no papel de Roque Santeiro. Um sucesso retumbante, cravando em média 75% da audiência da TV. Mesmo assim, Gomes e Aguinaldo Silva, que o auxiliava na escrita dos capítulos, continuaram sofrendo ação da censura, especialmente as menções à teologia da libertação, movimento católico influenciado pelo marxismo.
Momentos reveladores sobre a face mais assustadora da censura, como Laura observa ainda no texto de introdução do livro: “É preciso romper com o mito de que a censura é restrita a ditaduras, igualmente não se pode esquecer de que ela é suprapartidária, ‘democraticamente’ distribuída à direita e à esquerda, porque visa à manutenção do poder para qualquer que seja a tendência política”.
Laura, repórter e colunista da Folha de S. Paulo, fez uma pesquisa incansável – além de várias entrevistas, debruçou-se sobre mais de 2 mil páginas de documentos, com destaque para as 432 páginas escritas por funcionários do Serviço Nacional de Informações, o SNI, criado pelo governo militar em 1964. Documentos valiosos porque detalham o grau de conhecimento dos censores – em um ofício, por exemplo, é revelado indício de que o governo sabia que a novela de 1975 era uma versão da peça censurada na década anterior.
Em outro ofício, datado de agosto daquele ano, o governo veta a tentativa da Globo de trocar o horário de exibição da novela Gabriela, das 22h para as 20h – isso abriria um espaço na programação para Roque Santeiro. O documento com a proibição, além de inviabilizar totalmente a estreia do folhetim de Dias Gomes, traz detalhes sobre a insatisfação da Divisão de Censura de Diversões Públicas, órgão da Polícia Federal, em relação à adaptação da obra de Jorge Amado, “novela que vem mostrando cenas situações que agridem os padrões normais da vida no lar e na sociedade”, mas que não são vetadas, e sim toleradas “para evitar transtornos à emissora, com a retirada de todos os capítulos comprometedores”. Ou seja, a “gentileza” em relação à Gabriela parecia justificar o veto à Roque Santeiro.
Outro grande trunfo de Laura Mattos foi a possibilidade de acesso a um diário inédito escrito por Dias Gomes entre 1959 e 1962, cedido pela viúva do dramaturgo, a atriz Bernadeth Lyzio. Trata-se de um importante período na carreira de Gomes, dividido entre a incerteza sobre o rumo artístico que deveria tomar até a escrita e a consagração de O Pagador de Promessas (1960), seu grande sucesso. Gomes considerava a representação teatral como um ato social. E, por conta disso, qualquer peça deveria ter a função não apenas de divertir mas, principalmente, de estimular a reflexão.
Militante do Partido Comunista Brasileiro, o dramaturgo duvidava também dos caminhos às vezes seguidos pelos correligionários, especialmente quando apoiavam o veto como forma de imposição de opiniões. Brutalidade que o acompanhou, no entanto, durante boa parte da vida artística na perseguição dos diversos órgãos de censura. Mesmo durante o período de redemocratização (a partir de 1985), Dias Gomes continuou sob observação – 13 de fevereiro de 1990 é a data do último registro feito pelo SNI, um mês antes da extinção do órgão. Apontado como “militante do PCB” e com “antecedentes negativos”, ele apenas solicitava autorização para viajar. Não para Cuba ou União Soviética, mas aos Estados Unidos.