Livro conta a trajetória do bando de Lampião pela ótica das mulheres
Em Maria Bonita – Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço, Adriana Negreiros desfaz vários mitos
atualizado
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“Por trás de um grande homem, há sempre uma grande mulher”. Eis uma frase famosa proferida com ares de machismo e certo sentimento de culpa quando querem valorizar o papel do sexo feminino. Mas será que a sentença se adaptaria ao casal Maria Bonita e Lampião, os foras da lei mais famosos do país, no início do século passado?
Na linha dos assaltantes Bonnie e Clyde, nos EUA, a dupla de cangaceiros desafiou autoridades e o sistema vigente com práticas criminosas ousadas e brutais que, até hoje, habitam o imaginário popular. Essa história é contada agora pela ótica feminina no livro Maria Bonita – Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço, da Editora Objetiva. Escrito pela jornalista Adriana Negreiros, a obra narra em detalhes a rotina das mulheres no bando e destrói alguns mitos.
Um deles é o de que a Rainha do Cangaço não tinha nada de justiceira ou guerrilheira. Muito menos vocação para Joana D’Arc da Caatinga.
“Porém, ela foi uma mulher transgressora, corajosa e inconformada. É preciso muita valentia para escolher viver ao lado do fora da lei mais procurado do Brasil, enfrentando fome, sede e perseguição policial”, conta Adriana Negreiros, ao Metrópoles.
Resultado de dois anos de investigação, a autora escancara também uma realidade chocante. As narrativas das mulheres que fizeram parte dos bandoleiros, grande parte forçada a deixar para trás suas famílias, foram desqualificadas ou subestimadas. Os relatos de estupros e violência contada por Dadá, por exemplo – a esposa de Corisco, o famigerado Diabo Loiro –, então com apenas 13 anos, eram vistos por muitos como exagerados.
“Colocar em suspeição a versão das cangaceiras faz parte do mesmo padrão e da mesma lógica que insiste em desqualificar os relatos das mulheres quando violentadas”, compara a autora no epílogo do livro.
“Ô mulher chata”
Ao todo, são 17 capítulos que colocam em evidência a participação da mulher no grupo de Lampião. Tudo começaria em 1929. Naquele ano, insatisfeita com os maus-tratos e estripulias do marido, Maria Gomes não vacilou em abandoná-lo, passando a ser conhecida desde então como a “Maria do Capitão”, ou simplesmente, “Dona Maria”. Ao abrir essa exceção e quebrar o código de honra dos cangaceiros, outras vieram.
Não de vontade própria, como Maria Bonita, mas a contragosto. Foi o que aconteceu com Inacinha, mulher do cangaceiro Santílio Barros, o Gato; Lídia Vieira, mulher do cabra José Aleixo, o Zé Baiano; assim também como Sila; Neném; e tantas outras. Segunda na hierarquia do bando, Dadá, uma das primeiras a chegar ao grupo, era implicada com as risadas altas e a forma de vestir – “arrumadinha como uma boneca” – da Rainha do Cangaço.
“Ô mulher chata”, dizia baixinho, serrando os dentes.
A vida na Caatinga com o bando era árdua. Ao engravidar, a primeira imposição era entregar a criança para adoção. Traição se resolvia na bala. Já nos afazeres domésticos, homens e mulheres dividiam funções: costurar, lavar e cozinhar, sendo que os homens ficavam encarregados de caçar e assar o bicho, depois que elas limpavam e temperavam tudo. Quando o menu era passarinho, o próprio Lampião fazia o preparo.
À revelia das fotos com rifles, fuzis e cartucheiras cruzadas no peito, a valentia das mulheres do cangaço, na prática, restringia às versões romanceadas de sucessos populares – como a minissérie da Globo de 1982 estrelada por Nelson Xavier e Tânia Alves. Proibidas de ir para as batalhas, poucas enfrentavam o perigo. Maria Bonita, que sempre andava com uma pistola na cintura, nunca deu um tiro. Já Dadá, amava revólveres e fuzis.
Na história do banditismo rural no país, um dos episódios mais bizarros do Brasil profundo, nem sempre o diabo era tão feio quanto pintavam, embora as poucas tintas que lhe eram reservadas traziam matizes tenebrosos.
Maria Bonita – Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço
Adriana Negreiros. Editora Objetiva, 296 páginas, R$ 49,90