Jorio Dauster comenta sobre seu ofício: traduzir grandes autores, como Salinger e Nabokov, entre outros
Mais reconhecido por seu trabalho empresarial e diplomático, ele se dedica à literatura desde a década de 1960
atualizado
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Talvez você já tenha lido Jorio Dauster. Mesmo sem saber. Passaram pelas mãos e pelos olhos de Dauster, textos de escritores celebrados como Philip Roth, Ian McEwan, Thomas Pynchon e Alice Munro. E ao menos duas obras fundamentais para a literatura do século 20: “Lolita”, de Vladimir Nabokov, e “O Apanhador no Campo de Centeio”, de J.D. Salinger.
Numa peculiaridade biográfica que diz um bocado sobre a sociedade e os valores contemporâneos, Jorio Dauster é muito mais lembrado na mídia por suas atividades diplomáticas e empresariais do que por suas habilidades linguísticas e literárias.
Formado pelo Instituto Rio Branco, especializou-se em comércio exterior ao longo da carreira. Foi presidente do Instituto Brasileiro do Café (de 1987 a 1990) e da Companhia Vale do Rio Doce (de 1999 a 2001). Entre um e outro postos, trabalhou nas negociações da dívida externa junto ao Fundo Monetário Internacional e serviu como embaixador junto à União Europeia.
Aos 78 anos, o carioca Jorio Dauster ainda circula com desenvoltura no meio diplomático. Mas desde 2001 fixou residência em Brasília, por onde já tinha passado breves temporadas nas décadas anteriores, e aqui vem se dedicando à tradução. Atualmente divide seu tempo entre um apartamento no Rio de Janeiro e sua casa no Lago Sul. O computador pessoal em que trabalha e boa parte de sua biblioteca ficam aqui em Brasília. Para viajar, e ele viaja um bocado, leva o notebook com os arquivos digitais do livro da vez.
Caulfield em Nova York
A atividade como tradutor surgiu para Dauster como hobby e ainda hoje se confunde com diversão. Seu primeiro serviço, feito por puro afeto, foi justamente “O Apanhador no Campo de Centeio” (1951). Impactado pela prosa libertária de J.D. Salinger (1919-2010), Dauster lançou-se a verter as aventuras de Holden Caulfield, o garoto que sai do internato e perambula pelas ruas de Nova York em um par de dias.
Dividida com seus colegas embaixadores Álvaro Alencar e Antônio Rocha, a versão de Dauster para Salinger sairia em 1965 pela Editora do Autor, casa fundada por Rubem Braga, Fernando Sabino e Walter Acosta. Circulando desde então, “Campo de Centeio” está na décima-nona edição e já vendeu 350 mil cópias no país, atingindo pelo menos três diferentes gerações de leitores.
Foi em sua casa no Lago Sul que Jorio Dauster recebeu o Metrópoles para a sessão de fotos que ilustra esta matéria. Para tanto, ele teve que interromper, no meio de um parágrafo, a tradução de “The Facts” (1988), romance autobiográfico de Philip Roth a sair ainda este ano pela Companhia das Letras.
A entrevista a seguir, ele já havia concedido antes, em trocas de e-mails. Nela, Dauster comenta sobre suas atividades intelectuais e seu gosto pelos romancistas com os quais vem convivendo intimamente, palavra por palavra, nos últimos cinquenta anos.
1ENTREVISTA// Jorio Dauster
“O Apanhador no Campo de Centeio” foi logo a primeira de suas traduções. O que te levou a realizá-la?
A vontade de traduzir veio quando, durante um ano passado em Washington, descobri “Catcher in the Rye” (título original do livro de J.D. Salinger). Voltando para o Brasil e já cursando o Instituto Rio Branco, soube que outro amigo e colega, Álvaro Alencar, tinha a mesma intenção, somando-se a nós mais tarde o Antônio Rocha. Daí nasceu a ideia ousada de uma tradução a seis mãos. Na verdade, um gesto de amor literário compartido. A partir de então, fiquei infectado pelo vírus da tradução e nunca mais parei.
Então traduzir era apenas um hobby?
Num país em que as resenhas literárias nem costumam mencionar o nome do tradutor e sua remuneração é irrisória, tiro o chapéu para quem faz disso uma profissão. Em meu caso, como traduzia em paralelo às minhas funções como diplomata e mais recentemente o faço enquanto trabalho como executivo/consultor de empresas, a tradução é um magnífico passatempo, a nave espacial que me leva para longe das atribulações do cotidiano. “O Apanhador no Campo de Centeio” foi uma aventura amadorística, pois só depois de pronto fui buscar quem o publicasse. Hoje as editoras me oferecem certas obras estrangeiras que pretendem lançar no Brasil e escolho o que me atrai, sem a obrigação de prazos rígidos de entrega. Com isso, cada novo livro se torna realmente um belo passeio intelectual.
A tradução de “O Apanhador no Campo de Centeio” marcou época nas letras nacionais já a partir do próprio título do livro. Como se deu a divisão do trabalho entre Álvaro Alencar, Antônio Rocha e você?
Como em outras duas vezes que fiz cotraduções, cada um fica com uma parte e submete seu trabalho à revisão dos demais até que se chegue a um consenso. Neste caso, como me deixaram alguns meses em casa por causa do golpe militar de 1964, tive amplo tempo para homogeneizar o texto, uniformizando a linguagem dos três. Por sinal, tínhamos proposto como título “O Sentinela do Abismo”, mas Salinger insistiu na tradução literal depois de conhecer as barbaridades que tinham feito pelo mundo afora. Imagine que em espanhol tascaram um “El Cazador Oculto”, com uma conotação de violência que contraria todo o espírito da obra, enquanto em Portugal se saíram com um estapafúrdio “Agulha no Palheiro”.
Chegou a ter algum contato com Salinger?
Na época da tradução, Salinger já se tornara praticamente um ermitão, por isso só tive contatos com sua agente. Mas nunca pensei em me relacionar com nenhum autor, creio que eles já têm demasiadas exigências sociais (e comerciais), precisando mesmo é de paz para escrever. Naturalmente, compreendo que o tradutor de “Grande Sertão: Veredas” para o alemão (Curt Meyer-Clason) não tenha podido dispensar o volumoso contato epistolar com Guimarães Rosa.
Após ter traduzido “O Apanhador no Campo de Centeio”e “Nove Estórias” nos anos 1960, você voltou a Salinger ao menos uma vez: para traduzir “Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cummeira/Seymour, uma Introdução”, no início dos anos 2000 numa reedição pela Companhia das Letras. Como foi retomar esse “convívio” com Salinger?
Quando traduzimos “O Apanhador” e “Nove Estórias”, a Editora do Autor nos pediu que traduzíssemos os dois outros livros cuja publicação Salinger autorizara, o que não fizemos por falta de tempo. Foi uma sorte incrível poder, décadas depois, verter o “Carpinteiros”, faltando agora só “Franny & Zooey“. Não obstante, também traduzi outros três contos que devem ser publicados em breve no Brasil e todas as citações do autor na biografia lançada pela Intrínseca com o título de “Salinger”. É sempre uma alegria reencontrar a finesse do estilo de Salinger e sua excepcional aptidão para reproduzir diálogos.
E como te parece hoje sua tradução de “O Apanhador no Campo de Centeio” cinco décadas mais tarde?
Raramente releio os livros que traduzi – e, se o fizesse com frequência, não teria tempo de enfrentar novas obras. Mas vez por outra dou uma olhada no “Apanhador“ e acho que ele está resistindo bem, embora a linguagem coloquial seja a que mais se ressinta da passagem do tempo. Pelo entusiasmo com que é recebido pelas novas gerações, aqui e em todo o mundo, Holden Caulfield ainda tem algo importante a dizer.
Outra tradução definitiva foi a de “Lolita”, de Vladimir Nabokov. A edição desse livro no Brasil chegou a causar algum tumulto, como causou lá nos Estados Unidos?
Quando do lançamento de “Lolita” (1955), a sociedade norte-americana era profundamente careta, daí ter a história de uma relação pedófila assustado as grandes editoras apesar de não conter uma única palavra obscena. Publicado na França, numa editora de livros eróticos, ninguém menos que Graham Greene o elogiou entusiasticamente, abrindo as portas dos mercados de língua inglesa para se transformar, depois, num ícone cultural reconhecido em todo o mundo. Aqui no Brasil não houve nenhum prurido moralista e o livro foi logo visto como uma excepcional obra de arte, nos legando até os substantivos comuns lolita e ninfeta, de uso corrente.
“Lolita” tem também outras duas traduções nacionais: uma de Breno Silveira, anterior à sua, e uma bem mais recente de Sergio Flaksman, pela editora Alfaguara. Chegou a lê-las? Toma gosto por cotejar traduções?
Não leio traduções anteriores de obras em que estou trabalhando para não “contaminar” minha própria visão do texto. Não li as outras traduções de “Lolita”, embora tenha recebido comentários de quem cotejou os textos, em especial a passagem antológica que começa assim: “Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama”. Reconhecendo isso na sua introdução, a tradutora portuguesa Margarida Gato, em recente trabalho, usou esta última frase, o que me deixou muito lisonjeado. Por outro lado, Fernando Sabino me disse certa vez que pretendia comparar as traduções do “Apanhador” no Brasil e em Portugal para analisar a diferença do falar coloquial nos dois lados do Atlântico. Não o fez, mas quem sabe ainda daria um bom tema para alguma dissertação de mestrado.
Ao tradutor cabe um dilema… Aproximar-se mais do sentido exato narrativo, da semântica de cada palavra, ou se aproximar do ritmo, da cadência, do som… Poderia comentar sobre isso?Há centenas de trabalhos sobre a teoria da tradução, em que se discute se ela deve ser mais ou menos literal, etc. Com todo o respeito pelos autores desses livros e estudiosos da matéria, nunca li nenhum deles. Para mim, traduzir é escrever seguindo um roteiro traçado por alguém que fez algo que eu não saberia fazer tão bem quanto ele. Mas, como aquilo foi feito em outro idioma, em outro lugar e outro tempo, eu terei traduzido bem sua criação caso o leitor brasileiro possa ter a ilusão de que compus o texto ontem mesmo e em português. Evidentemente, como simples artesão, trato de me ater tanto quanto possível ao original, mas a literalidade total é impossível e contraproducente. Quando se está lidando com um ourives da palavra, como Nabokov ou Flaubert, que eram capazes de passar horas procurando o termo exato, os cuidados precisam ser maiores, mas é então que se vê também como a língua portuguesa é rica ao oferecer quase sempre a palavra que traz uma carga emocional correspondente à do original.
Philip Roth anunciou sua aposentadoria há três ou quatro anos. Para muitos, trata-se do maior romancista norte-americano vivo e candidato natural ao Nobel. É possível dar hoje a dimensão exata de seu legado?
Nunca fui muito chegado a fazer lista de melhores, mas, sem dúvida, Philip Roth se coloca entre os maiores escritores norte-americanos vivos. Sem esquecer, apenas como exemplo, dois que traduzi, a saber Thomas Pynchon e Jonathan Franzen. Do Roth, verti “Indignação”, “Nêmesis”, “Patrimônio” e “Professor do Desejo”, estando agora às voltas com o autobiográfico “The Facts”. Acho que, no momento, o maior romancista de língua inglesa é Ian McEwan, de quem tive o privilégio de verter “Jardim de Cimento”, “Amsterdam”, “Solar”, “Amor Sem Fim” e, mais recentemente, o admirável “A Balada de Adam Henry”. Mas a Academia sueca, que nunca concedeu o Nobel a Nabokov ou a Salinger, costuma preferir uns poetas de quem ninguém jamais ouviu falar. Uma boa exceção foi a recente escolha da canadense Alice Munro, de quem traduzi os extraordinários contos de “O Amor de uma Boa Mulher”. Assim, já ganhei uma beiradinha do Nobel e espero faturar outros mais.
Trechos
“Se querem mesmo ouvir o que aconteceu, a primeira coisa que vão querer saber é onde eu nasci, como passei a porcaria da minha infância, o que meus pais faziam antes que eu nascesse e toda essa lenga-lenga tipo David Copperfield, mas, para dizer a verdade, não estou com vontade de falar sobre isso. Em primeiro lugar, esse negócio me chateia e, além disso, meus pais teriam um troço se eu contasse qualquer coisa íntima sobre eles.” (J.D. Salinger, “O Apanhador no Campo de Centeio”)
“Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta. Pela manhã ela era Lô, não mais que Lô, com seu metro e quarenta e sete de altura e calçando uma única meia soquete. Era Lola ao vestir os jeans desbotados. Era Dolly na escola. Era Dolores sobre a linha pontilhada. Mas em meus braços sempre foi Lolita.” (Vladimir Nabokov, “Lolita”)
“Estar sozinho também me possibilitava expressar toda a emoção que eu sentia sem necessidade de assumir uma postura máscula, madura ou filosófica. A sós, eu chorava quando me dava vontade de chorar, e nunca essa vontade foi tão grande como quando tirei do envelope a série de imagens do cérebro dele – não porque eu fosse capaz de identificar com facilidade o tumor que lhe invadia o cérebro, mas simplesmente porque se tratava do cérebro dele, do cérebro do meu pai, daquilo que o fazia pensar da forma curta e grossa com que pensava, falar da forma enfática com que falava, raciocinar da forma emotiva com que raciocinava, decidir da forma impulsiva com que decidia.” (Philip Roth, “Patrimônio”)
“Olhava-me com frequência nos espelhos, às vezes por uma hora. Certa manhã, pouco antes de completar quinze anos, estava procurando por meus sapatos no imenso e escuro hall de entrada quando me vi no espelho de corpo inteiro encostado à parede. Papai falava sempre em pendurá-lo. Raios de luz coloridos pelo vitral no alto da porta da frente iluminavam alguns fios desgarrados de meus cabelos. A semiescuridão amarelada obscurecia os caroços e buracos na pele do meu rosto. Senti-me nobre e especial. Olhei fixamente para minha própria imagem até que ela começou a se dissociar de mim e paralisar-me com seu olhar. Ela se afastava e se aproximava de mim a cada batida do meu coração, um halo sombrio pulsava acima de sua cabeça e de seus ombros. ‘É duro’, ela me disse. ‘Duro’. Então, em voz mais alta: ‘Merda… mijo… cu’. Da cozinha, numa voz cansada, mamãe pronunciou meu nome em admoestação.” (Ian McEwan, “O Jardim de Cimento”)