Didi não é devidamente reconhecido por ser nordestino, diz biógrafo
Para o jornalista Rodrigo Fonseca, o talento do comediante Renato Aragão é vítima de esnobismo da crítica
atualizado
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Reza a lenda que, numa noite de domingo, tocou o telefone na casa do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade. Do outro lado da linha, um jornalista afobado tentou arrancar declaração de última hora do autor, mas foi interrompido pela seguinte resposta: “Ele agora está vendo Os Trapalhões. Liga depois”.
Folclore ou não, a blague dá a dimensão exata da popularidade e do sucesso de quatro comediantes que, no final dos anos 1970 e toda a década de 1980, reinaram como os monarcas do riso e da gargalhada no Brasil: Os Trapalhões.Renato Aragão, um nordestino baixinho de cabeça-chata, assumiu a dianteira de um humor popular estrondoso que misturava as peripécias do picadeiro e a malícia quase ingênua das chanchadas do cinema nacional nos anos 1950. Maior comediante vivo brasileiro, o cearense cristalizaria para sempre nos corações de várias gerações, a persona lúdica de Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgino Mufumbo, o nosso eterno Didi.
“Não é um qualquer. É o ‘ídolo de infância’ de formação do Brasil em termos de cinema, que formou gerações de brasileiros como espectadores”, explica o jornalista e crítico de cinema Rodrigo Fonseca, 38 anos. Ele é autor do livro Renato Aragão: Do Ceará Para o Coração do Brasil, lançado pela editora Estação Brasil, um dos braços da Sextante.
Preconceito
Um clown que construiu seu espaço dentro da cultura brasileira apostando num tipo de humor mais físico, chaplinesco, em detrimento da comédia falada, Renato Aragão e seus amigos de riso sempre foram vítimas da arrogância e esnobismo de críticos e especialistas. Para o jornalista Rodrigo Fonseca, tudo não passava de mero despeito regionalista.
“O Renato sofreu muito preconceito, sim, primeiro por conta do sucesso estrondoso de um nordestino em nível nacional e porque ele fazia um tipo de humor diferente da comédia consagrada nacionalmente, gerando uma ruptura. Mas, ele se impôs por uma vocação quase natural, fez da coisa da infância o seu porta-voz, conquistando para si um espaço de criação dentro da memória do cinema brasileiro”, destaca.
Depoimentos
Fã confesso do comediante de 82 anos, Rodrigo, presidente da Associação de Críticas de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ), passou seis meses encontrando com Renato Aragão para colher informações, relatos e recordações. Esse extenso material serviu de base para a “biografia em forma de depoimento”.
“Eu entrei nesse projeto a convite do Renato”, revela Fonseca, que escreveu o roteiro da versão 2017 dos Trapalhões, além de roteirizar séries e outros programas da emissora. “Eu já tinha uma pesquisa de 15 anos sobre ele”, conta.
Recheado por inúmeras fotos, boa parte delas garimpada no acervo pessoal do artista, então sob a guarda da esposa Lilian Aragão, Renato Aragão – Do Ceará Para o Coração do Brasil não é uma biografia nos moldes tradicionais. Tem a característica de um livro-depoimento dividido em nove curtos capítulos temáticos que passam a limpo, de forma ágil, a carreira do comediante nascido em janeiro de 1935, em Sobral (CE), como Antonio Renato Aragão.
“Este livro é uma forma de saciar a curiosidade das pessoas sobre o percurso que venho fazendo”, entrega Aragão logo nas primeiras páginas da obra.
Algumas histórias lembradas pelo comediante são do balacobaco. Por alto, o leitor vai ficar sabendo quem foram os principais vilões nos filmes dos Trapalhões, os amigos de cenas, os famosos “escadas”, a primeira formação da trupe (ainda da TV Tupi com Ted Boy Marinho, Ivon Curi e Wanderley Cardoso), os bastidores da ida do grupo original para Globo, em 1977, o adeus aos parceiros Mussum e Zacarias.
O livro começa com apresentação dos Trapalhões na Angola, nos anos 1990. Na ocasião, Renato e a trupe ficaram chateados porque boa parte da população do país africano, assolado pela miséria, não pôde pagar o ingresso de U$ 500. Quando a TV local colocou um microfone diante de sua boca, ele metralhou sério: “Hoje vamos fazer um show aqui. Mas, amanhã vamos fazer um espetáculo de graça, para quem quiser ir, no Cine Karl Marx”.
Noutra passagem, Renato Aragão aparece aos 5 anos de idade exibindo longas madeixas, devido a uma promessa de cortar os cachos loiros só dali a dois verões. “Imagina o quanto de bullying que eu não devo ter sofrido, em pleno Nordeste, na Sobral de mil novecentos e antigamente”, ri o humorista.
Um dos momentos mais marcantes do livro é a revelação de um acidente de avião, em setembro de 1958, na serra do Bodocongó, Paraíba, que quase tirou a vida de nosso Didi, então com 20 e poucos anos. Na época, ele integrava a equipe de futebol da faculdade de Direito de Fortaleza e voltava dos XIV Jogos Universitários Brasileiros, sediados em Belo Horizonte.
“Impossível dizer quanto tempo Renato levou para recobrar os sentidos. Quando afinal abriu os olhos, estava de ponta-cabeça, preso pelo cinto da poltrona. (…) Após confirmar que se achava em condições de se mover, a prioridade foi encontrar o amigo Praça. Depois de minutos aflitivos, a emoção do reencontro. Ajoelhados, rezaram, agradecendo a Deus por estrarem vivos”, narra o jornalista Rodrigo Fonseca.
“Renato Aragão: Do Ceará Para o Coração do Brasil”
De Rodrigo Fonseca. Editora Estação Brasil. 304 páginas. R$ 49,90